Dignidade, equidade e solidariedade

No início eram os médicos. E ainda o são. Serão sempre os médicos. Aqueles que fazem milhões de horas extraordinárias por ano.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) faz hoje 43 anos. Criado e desenvolvido graças ao trabalho, dedicação e resiliência de várias gerações de médicos e profissionais de saúde que fizeram, e fazem, todos os dias, o SNS, construindo serviços, transmitindo conhecimento a milhares de jovens, salvando milhões de pessoas e restituindo-lhes o seu bem mais precioso: a saúde.

No início era a equidade. Alcançada através do esforço e da coragem de muitos médicos, com primórdios no Serviço Médico à Periferia (1974-1982). No início, sem SNS, vivíamos num país a duas velocidades polarizadas, onde grande parte da população dispersa no território nunca tinha visto um médico ou vendia os seus próprios bens para conseguir pagar uma consulta na cidade. Foi uma geração de médicos que se deslocou ao interior do país para lançar as bases do nosso serviço público de saúde e, provavelmente, sem o saberem, as bases da consolidação democrática. Foi este notável ponto de partida que permitiu o início do princípio da equidade no sentido de fazer chegar cuidados de saúde a todo o país.

Não esquecemos também, hoje e sempre, o importante papel de António Arnaut que teve a visão e a coragem política de transformar em lei (56/79) aquilo que os médicos sonharam, projetaram e planearam para os portugueses: um serviço público que assegurasse cuidados de saúde de qualidade e acessíveis para todos, independentes das assimetrias geográficas e que, simultaneamente, fosse capaz de garantir formação de elevada qualidade. Fizeram-no construindo a carreira médica, melhorando, por consequência de todos estes fatores, qualquer indicador de saúde global.

No início era a solidariedade. Visível, por exemplo, na formação médica. Onde os mais experientes ensinam os mais novos e os mais novos contribuem com inovação e na atualização dos mais experientes. Isso não mudou e a Ordem dos Médicos continuará a pugnar pela qualidade da medicina, através da formação médica (mas não só). Solidariedade que se arrastou a todos os portugueses através do modelo de financiamento do SNS. O que mudou foi a insaciedade política, já rotinada, de encontrar bodes expiatórios, negando evidências e empurrando responsabilidades. A verdade é que a partir do momento em que o planeamento, organização e gestão do SNS ficou a cargo dos políticos, começou-se a navegar à vista, sendo alvo de tomadas de decisão para cumprir objetivos imediatos, com consequências arrasadoras para todos, profissionais e doentes.

No início eram os médicos. E ainda o são. Serão sempre os médicos. Aqueles que fazem milhões de horas extraordinárias por ano (2021 bateu o recorde com os profissionais do SNS a realizarem perto de 21,9 milhões de horas extra, um acréscimo de 26% em relação a 2020, de acordo com o Portal do SNS). Aqueles que abdicaram de tempo com a família, com os seus filhos, com os seus cônjuges, e que em casos extremos deram a sua vida para cuidar dos seus doentes durante a pandemia, sem nunca deixar ninguém para trás. Aqueles que fizeram um juramento e cumprem-no todos os dias em prol da humanidade. Aqueles que já deviam ter sido valorizados e dignificados para conseguirem continuar a dar o seu contributo insubstituível num SNS que está cada vez mais doente, ficando de pé apenas porque os médicos e os profissionais de saúde o carregam às costas.

Quando temos um novo ministro da Saúde vale a pena recordar a urgência em ajudar o SNS porque o seu peso está a ficar demasiado excessivo para as mulheres e os homens que o suportam. E não vale a pena continuar a dizer que há falta de médicos em Portugal porque a verdade é que os números nunca nos dizem tudo, mas nunca mentem. De acordo com os dados mais recentes da OCDE, Portugal é o terceiro país com mais médicos por mil habitantes (5,3), quando a média é de 3,6, tal como é um dos países que mais novos estudantes de Medicina tem por ano — 15,8 por 100 mil habitantes quando a média é de 13,5. Não conseguir criar as condições adequadas para manter os médicos no SNS é pura incompetência política. Respeitar os médicos e os profissionais de saúde, valorizar a carreira, a formação e o trabalho de quem tanto lutou para poder salvar vidas, com intenso e prolongado estudo, conhecimento e responsabilidade, é uma questão de justiça social e de sobrevivência do SNS.

Nós fazemos a nossa parte. É tempo de os políticos fazerem a sua e adaptarem o SNS aos tempos modernos. Só assim teremos um serviço público preparado para proteger, cuidar e tratar dos cerca de 10 milhões de portugueses. Como nos disse Martin Luther King Jr.: “Hoje é sempre o dia certo, de fazer as coisas certas, de maneira certa. Amanhã será tarde”.

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