Quando entra numa discoteca e vê pessoas a dançar, João Marques não olha para elas da mesma forma que nós. Onde um observador leigo vê uma dança, o cientista pressupõe um conjunto de várias coisas diferentes, feitas em sequência, que formam o conjunto. “Quando passam uma música que nunca ouvimos, nós temos uma dança para ela. É um comportamento novo, mas fazemo-lo sem pensar, sem treinar, sem esforço.” A razão é simples: “cada um de nós tem já o seu repertório pessoal de movimentos mais simples para formar aquele comportamento complexo, que é dançar”, diz o cientista de 40 anos. Dependendo da música, pegamos nessas pequenas rotinas mais simples e reutilizamo-las para fazer uma coisa parecida, mas nova: dançar uma música que nunca ouvimos antes.

Dançar é um entre muitos comportamentos altamente complexos, apurados ao longo de milhões de anos de evolução. “Os animais evoluíram para ter uma série de comportamentos que lhes permitam sobreviver: evitar perigos, encontrar comida, socializar, explorar o mundo”, esclarece João Marques. E selecionam o comportamento adequado com base nos seus estados internos – como a fome e o desejo de socialização – mas também nos estímulos externos – como fugir quando avistam um predador.

Combinando os estados internos com os estímulos externos, o animal escolhe o conjunto de movimentos apropriados, sobrevive, passa os genes para a progénia e os seus filhos vão ter esse mesmo repertório de movimentos que lhes permite continuar a sobreviver no mundo.”

Mas saber como isso acontece, exatamente, ainda é um mistério e motivo de debate. Alguns investigadores alegam que o cérebro é capaz de produzir movimentos de forma mais ou menos aleatória, outros – como João Marques – sustentam que, pelo menos entre alguns animais, os movimentos são selecionados dentro de um repertório já perfeitamente predefinido e limitado.

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Esta última ideia é antiga e foi proposta nos anos 1950 pelo etólogo Nikolaas Tinbergen, vencedor do prémio Nobel da Medicina em 1973. O estudioso do comportamento animal foi o primeiro a defender que os animais têm um repertório finito de movimentos que rearranjam em sequências diferentes. “Mas a ideia caiu um pouco em desuso durante muitos anos porque é difícil de provar. Por um lado, porque é muito difícil ver todo o repertório de movimentos de um animal, por outro, porque, na maioria dos animais, o comportamento é contínuo: é muito difícil perceber onde termina um e começa outro.”

João Marques acredita que “os animais evoluíram para ter uma série de comportamentos (evitar perigos, encontrar comida, socializar, etc)” que selecionam a partir de um conjunto de movimentos predefinidos, e de acordo com os estímulos que os motivam, como fome ou fuga

João Marques resolveu o problema ao estudar a larva do peixe zebra. Ao contrário da maioria dos outros animais, os seus movimentos são discretos, ou seja, em vez de se movimentar em contínuo, cada movimento tem um início e um fim perfeitamente definidos. Durante o doutoramento, na Fundação Champalimaud, em Lisboa, o investigador conseguiu marcar pontos para a teoria de Nikolaas Tinbergen: o seu trabalho revela que a larva do peixe-zebra tem um repertório de 13 movimentos. Usa-os quer esteja a fugir de um predador ou a procurar comida, apenas os reagrupa em sequências diferentes, dependendo do resultado final pretendido, um pouco como fazemos como as letras do alfabeto. “Partindo de um número muito limitado de letras, rearranjamo-las de modo a fazer um número quase infinito de palavras”, compara.

Depois, no seu primeiro pós-doutoramento, no Instituto Rowland, da Universidade de Harvard (EUA), o cientista português dedicou-se a captar os dados da actividade neuronal dos animais. Para isso teve de desenvolver tecnologia nova que pudesse contornar um problema peculiar: a larva do peixe-zebra tem a aceleração de um carro de fórmula 1. Assim, até aí só era possível filmá-la captando, por breves momentos, a actividade neuronal: o animal rapidamente nadava para fora do campo de visão do microscópio. A alternativa era mantê-lo preso num espaço limitado, mas, nesse caso, o movimento e atividade neuronal medidas eram de pouco valor, já que o animal estava condicionado. “Criámos então uma arena que se move: detecta o movimento do animal e, através de algoritmos em tempo real, movimenta-se para ele estar sempre debaixo da objetiva do microscópio.”

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Os peixes usados, geneticamente modificados, são um modelo animal cujos neurónios ficam fluorescentes quando se ativam e, como a larva do peixe zebra é naturalmente transparente, isso permite vê-los. “Assim conseguimos medir a atividade de todos os neurónios em simultâneo enquanto o animal está a ser sujeito a estímulos que normalmente tem na sua vida: caçar, fugir de um predador, interagir com outros animais.”

Agora, com o projeto de pós-doutoramento financiado pela bolsa Junior Leader, da Fundação “la Caixa”, o investigador está a analisar todos os dados recolhidos para ir mais longe e perceber exatamente onde, no cérebro do peixe zebra, estão “gravados” estes 13 movimentos que identificou. “É expectável que exista uma rede neuronal para cada um destes movimentos. Além disso, queremos também tentar perceber como é que eles são rearranjados em sequências, para que os animais consigam fazer os comportamentos mais complexos.”

O objectivo da investigação é o conhecimento pelo conhecimento: compreender como é que o cérebro cria movimentos. Poderá abrir novos caminhos para terapias de doenças neurológicas do movimento (como Huntington ou Parkinson) e pode ajudar a desenvolver algoritmos para robots móveis autónomos

O objetivo da investigação, como em todos os projetos de ciência fundamental, é o conhecimento pelo conhecimento: neste caso, compreender como é que o cérebro cria movimentos. Mas o investidor consegue antever duas áreas nas quais esta compreensão pode ser muito útil. A longo prazo, poderá abrir novos caminhos para terapias de doenças neurológicas do movimento, como a doença de Huntington ou de Parkinson. Mas pode haver outra aplicação a curto ou médio-prazo: o desenho de algoritmos para robots móveis autónomos.

“Se pegarmos num carro autónomo e o pusemos no deserto, ele não vai conseguir andar porque nunca viu um deserto. Mas se pegarmos num cão doméstico e o pusermos na selva, ele vai fazer a vida normal automaticamente”, compara o cientista.

Se percebermos como é que o cérebro de um animal pega num repertório restrito de movimentos e os rearranja para fazer comportamentos mais complexos, adaptados à situação, podemos tentar usar esse conhecimento para fazer um algoritmo que permita criar robots autónomos mais generalistas.”

Isso significaria que, em vez de desenharmos e programarmos robots para milhares de tarefas diferentes, um único modelo serviria para quase tudo. “Imagine quão útil seria termos robots generalistas, que não teríamos de ensinar a fazer uma coisa em particular. O robot que limpa a casa, o que apanha o lixo na rua e o que constrói outros robots poderia ser o mesmo. Economicamente seria muito interessante.”

Apesar destas duas áreas de aplicação, a saúde e a robótica, outras poderão ser descobertas. “Pode até vir a ser usado para um problema que ainda não existe”, diz o investigador, exemplificando como a pesquisa em torno dos vírus SARS, em 2003, veio a revelar-se tão útil em 2019, quando surgiu o SARS-CoV-2.

João Marques não começou o percurso no ensino superior com o pé direito. “Não gostei e nunca exerci”, diz sobre a licenciatura em Ciências Farmacêuticas, na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Mas, depois do curso terminado, surgiu uma oportunidade na área da investigação no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), onde desenvolveu o mestrado, na área da Microbiologia. Estudou algo que o fascinou: o quorum sensing,  a capacidade que as bactérias têm de se contar a elas próprias, para saberem quando estão em número suficiente para lançar um ataque eficaz ao hospedeiro. “É quase como se fosse uma capacidade cognitiva molecular das bactérias. Uma forma de inteligência.”

Esta experiência em Microbiologia ensinou-o a trabalhar segundo a abordagem genética: tirar genes e ver o que acontece, para perceber o que eles fazem.  Assim, quando iniciou o programa Doutoral em Neurociências da Fundação Champalimaud e começou a estudar o movimento, decidiu estudá-lo usando uma abordagem parecida: identificar unidades mínimas do comportamento – os pequenos movimentos – e perceber onde, na dimensão do cérebro, se encontra cada uma, ou seja, identificar os circuitos. “O meu lema é sempre ‘dividir para conquistar’.”

“Quão útil seria termos robots generalistas, que não teríamos de ensinar a fazer uma coisa em particular? O robot que limpa a casa, o que apanha o lixo na rua e o que constrói outros robots poderia ser o mesmo”

Terminado o pós-doutoramento, não põe de parte uma nova mudança. “Terei de arranjar uma nova pergunta. Poderá ser na área das neurociências, da microbiologia ou noutro campo. Não sei.” O cientista tem esta capacidade – e este gosto – de se desinstalar e voltar ao princípio. “Uma das partes mais interessantes da investigação, para mim, é essa possibilidade de aprender coisas novas. Durante o doutoramento, por exemplo, tive de aprender a programar. É só uma questão de tempo e motivação.”

Claro que sair do que já domina para uma área nova implica mais incerteza e mais probabilidade de falhar. Acontece que falhar não o assusta porque não confunde a falha da experiência com o falhanço pessoal. “Uma experiência falhada, a maioria das vezes, significa apenas que ainda não sabemos o suficiente para conseguir responder àquela questão.” Quando é esse o caso, em vez de enterrar tempo e energia numa coisa que não está a funcionar, desiste e procura uma pergunta mais simples. “Nesta profissão, como as pessoas são muito persistentes, esta postura pode ser um pouco contranatura, mas é necessária: é preciso saber desistir sem nos sentirmos mal com isso.”

João Marques fá-lo sem culpa nem frustração talvez pela forma como vê o próprio processo científico: “Acho que fazer ciência é menos saber responder a uma pergunta e mais saber encontrar a pergunta a que é possível responder.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de João Marques na Fundação Champalimaud foi um dos 45 selecionados (quatro de Portugal) – entre 635 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. O investigador recebeu trezentos mil euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As candidaturas para a edição de 2022 terminaram em outubro. Os prazos para a edição de 2023 abrem em julho.