Crónica de uma ópera

A Mátria é um conjunto de vidas reais mas com direito a um mundo inventado gesto a gesto, passo a passo, nota a nota.

Por Eduarda Freitas

Encontrei-me com as personagens da Mátria nos livros Contos e Novos da Montanha de Miguel Torga. Andei com eles nas viagens, com a cabeça encostada às janelas de comboios, aviões e autocarros, a ouvir aquele som para mim tão desconcertante entre o vidro, o que vai dentro da minha cabeça, e o “lá fora”. Em 2004, a caminho de Lisboa, encostada à janela do autocarro, a sonhar ser jornalista, ouvi na rádio que Portugal ia organizar o Euro 2004. Alguns dos passageiros bateram palmas, eu fiquei a ouvir o som das palmas misturado com o roncar do autocarro e a imaginar onde estaria eu nesse ano. Talvez a vida seja assim, feita de anos para a frente e de perguntas sem resposta mas que nos empurram para o futuro. Quando em 2011 decidi escrever o libreto da Mátria perguntava-me com a cabeça encostada a tantas viagens de latitudes diferentes, onde estaria eu quando a Mátria chegasse ao palco. Passaram-se 10 anos. Uma vertigem no tempo. Aconteceu o melhor e o pior de mim. Quando olho para o Job, para o Paulo, para o Tiago, o Mário, para a Regina, a Ana ou a Madalena, os solistas da Mátria, gosto de lhes imaginar a vida que viveram em 10 anos. Que desejos, que medos, que noites, que conversas, que gestos viveram. Porque são eles que vão levar a palco as personagens dos livros de Torga, que vão viver anseios e sonhos, quem sabe, idênticos aos que sentem.

É sempre uma descoberta escrever vidas. No caso do libreto da Mátria, limitei-me a conversar com os personagens, pedi-lhes licença para os tirar das páginas onde moravam há décadas e inventei-lhes um novo conto, a Mátria. Não há palavras que sejam minhas. Ou melhor, todas as palavras podiam ser minhas, nossas, mas estas foram encaixadas de uma forma que foi a forma que Miguel Torga lhes deu. E por isso são as palavras de Miguel Torga. Todas, sem direito a exceção.

No fundo, foi dar uma segunda oportunidade a personagens que já tinham morrido, umas de amor, outras de outros tipos de morte igualmente dolorosas, outras que nem imaginavam outros dias que não os habituais. Na Mátria vão ter outra vida, reencontrar palavras soletradas por outras bocas, vão de novo sentir o frio cortante do Marão nas noites de Natal, vão deitar mãos às vindimas do Douro, serpenteados pelos socalcos e pelos corpos quentes que ao ritmo do trabalho também se amam. E fazem filhos. Filhos da terra, inquietos, desassossegados, à procura do mundo, uns, outros leves como cabritos a saltar pelos montes sem pensar nas perguntas do amanhã. A Mátria é um conjunto de vidas reais mas com direito a um mundo inventado gesto a gesto, passo a passo, nota a nota. A sorte foi encontrar um criador como o Fernando C. Lapa que para além de compor a música da Mátria também vai compondo as nossas vidas com a inspiração própria dos grandes mestres.

Autora do libreto e produtora da ópera Mátria https://www.facebook.com/matria.pt