O gigante de pés de barro das bodycams

“Atendendo ao estado atual do uso dos sistemas de videovigilância no nosso país, é urgente a correcta utilização dos mesmos, enquadrada por um conjunto de normas legais e meios humanos e técnicos que permitam às forças de segurança a correcta utilização e manutenção dos mesmos.”

Nestes últimos dias, depois do anúncio da dissolução da Assembleia da República pelo Presidente da República, temos assistido à ânsia legislativa de temas que o Governo insiste em fazer passar, independentemente da sua sensibilidade e longe de qualquer consenso sobre o mesmo na sociedade civil.

Neste caso, falo da recente proposta de lei, relativa à utilização de sistemas de vigilância por câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança, também conhecida pela lei das bodycams.

Esta proposta de lei, aprovada com os votos a favor do PS, PSD, CDS-PP, PAN e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues, alarga os meios onde as câmaras podem ser usadas (por exemplo drones, embarcações…), assim como as finalidades de utilização e culminando com o alargamento, por exemplo, a áreas do domínio privado. Trata-se, portanto, de um gigantesco incremento de intromissão do Estado na vida de todos os portugueses.

Atendendo a isto, dita-nos a prudência que seria melhor definir detalhadamente a forma, meios e situações concretas em que a videovigilância poderia ser utilizada. Mas, efetivamente, prudência é algo que é incompatível com eleições no dia 30 de janeiro.

Podemos observar que a nova lei, em vez de definir concretamente situações em que se pode autorizar o uso de meios de videovigilância, remete sempre para uma autorização suprema do responsável do Governo com a tutela do órgão requerente. Ou seja, uma lei que está ferida de morte por discricionariedade ao sabor das modas e circunstâncias do momento.

O legislador chega mesmo ao absurdo de definir que os meios de videovigilância podem ser utilizados em locais de razoável risco da ocorrência de crimes. O que quer isto dizer? Ocorreram 10, 100, 1000 crimes no último mês, trimestre ou ano ou qualquer outro critério? Aqui a lei clara, é o tal responsável do Governo, iluminado e magnânimo, quem decreta, casuisticamente, quem é vigiado ou não.

Outro exemplo apontado pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) é a utilização destes meios para controlo de circulação de pessoas nas fronteiras. Atendendo que estamos integrados no espaço europeu, sem restrições à circulação de pessoas e bens, não se entende a subjetividade desta situação, abrindo um precedente perigoso para aplicação de meios de vigilância em larga escala.

Como se o descrito já não fosse um dos maiores ataques à esfera privada de cada um de nós nos últimos anos, eis que o próprio parecer da CNPD enumera 17 situações em que os atuais sistemas não respeitam princípios básicos de salvaguarda da informação, correndo riscos substanciais de intrusão, roubo ou destruição de informação.

Vou enumerar apenas alguns:

Registos de imagens armazenados desde o início da exploração do sistema
Hora e data não atualizada
Rede de dados utilizada pelo sistema da vídeo vigilância em local de acesso público
Sistemas desatualizados, uma vez que são adquiridos por municípios ou mantidos por terceiros onde as forças de segurança não têm qualquer forma de obrigar à sua correta manutenção
Contratos de manutenção que não obrigam a qualquer tipo de regras de proteção de dados
Perfis de administração dos sistemas não pertencentes às forças de segurança e desconhecidos por estas últimas
Controlo de acesso às salas de operações desativado ou extremamente fáceis de contornar

Só estes exemplos farão qualquer aluno do primeiro ano da licenciatura de Informática ficar de cabelos em pé. Com o aumento da abrangência da utilização da videovigilância, sem acautelar os princípios base do seu uso, o Governo PS está a construir um gigante com pés de barro.

Atendendo ao estado atual do uso dos sistemas de videovigilância no nosso país é urgente a correta utilização dos mesmos, enquadrada por um conjunto de normas legais e meios humanos e técnicos que permitam às forças de segurança a correta utilização e manutenção dos mesmos.

Até isso acontecer a atual lei é um desastre à espera de acontecer!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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