Pedro Peres
Pedro Peres Master in Sports Psychology

Estaremos a matar o futebol?

No passado sábado, em entrevista ao Corriere dello Sport, Carlo Ancelotti afirmou que "o futebol deve mudar rapidamente". O atual treinador do Real Madrid assinalou como prioridade a necessidade de "reduzir o número de jogos". Lamentou a diminuição da qualidade do espetáculo nos últimos anos e alertou para o facto dos jogadores não suportarem mais esta cadência que leva alguns deles a recusar convocatórias para jogos da seleção nacional. Ancelotti considera que o futebol vive sob a ameaça da fadiga física e mental, lesões e jogos que terminam 10 a zero e concluiu afirmando ter chegado "A hora de dizer basta. O futebol não aguenta se continuar como está".

Ainda que o treinador italiano seja uma referência mundial, alguns de nós, mais céticos ou resistentes à mudança podemos desacreditar-nos desta mensagem tão contundente. Podemos até encontrar algumas escapatórias para afastar o nosso quintal deste anunciado estado de sítio. No entanto, estas declarações surgem no mesmo sábado marcado pela realização de um jogo em condições, no mínimo, inadequadas ao respeito que a história do Jamor nos merece e que contabilizou um desfecho de 7-0 ao cabo de apenas 47 minutos.

Se, ainda assim, desvalorizarmos a mensagem por ser apenas uma tirada de quem, ainda há bem pouco tempo, defendia a Superliga europeia e mundiais de dois em dois anos, pela crença de termos o futuro assegurado pelo talento que vamos criando, por consideramos ser este um problema do futebol sénior e do alto rendimento que nos permite aliviar o horizonte de qualquer vislumbre fúnebre do futebol luso…

Pois bem, numa breve passagem pelos resultados do campeonato nacional de sub17 da época desportiva em curso, verificamos que nas 11 jornadas da primeira fase, as equipas de SL Benfica, FC Porto e Sporting CP tinham 44, 50 e 53 golos marcados e apenas cinco, quatro e quatro sofridos, respetivamente. Verificamos ainda, que em 14 dos 33 jogos, por elas, realizados o marcador registou uma diferença maior ou igual a cinco golos com várias partidas a registarem resultados como: 11:0; 10:1; 9:0; 8:0; 7:0; 6:0, sendo que apenas nove terminaram empatadas ou com margem mínima.

Ora, quando referências do futebol mundial como Carlo Ancelotti nos dizem que resultados de 10-0 são preocupantes para o futebol de hoje, o que dizer sobre as contendas altamente desequilibradas verificadas na formação? O que pensar sobre um futuro que hoje se nos depara repetidamente com diferenciais de dois dígitos no marcador onde, não poucas vezes, as equipas de menor nomeada apenas se apresentam nos recintos para serem cilindradas e sem qualquer possibilidade de ripostar um único remate à baliza com sucesso.

A situação deve-se em larga escala, à enorme capacidade de recrutamento dos grandes clubes que conseguem, entre eles, reunir no mesmo escalão os 200 ou 300 jovens mais talentosos do país, secando todas as outras equipas em redor. Esta metodologia eucaliptal distribui os melhores por um mesmo emblema e deixa, ainda mais, enfraquecidas as equipas de clubes já de si parcos em potencial humano. Neste contexto, a balança competitiva desequilibra irremediavelmente e algumas competições resumem-se aos jogos entre as equipas possuidoras de todos os bons recursos.

O exemplo do Ajax de Amesterdão que, ao perceber que, mesmo tendo nas suas fileiras os melhores jogadores em cada escalão formativo, o potencial se estaria a desenvolver a um ritmo aquém das expetativas, deduziu que os atletas estavam a sofrer com a falta de oposição e competitividade.

Então, e considerando que o desenvolvimento do talento deve estar num patamar de interesse mais elevado que as vitórias a cada jornada, a direção do Ajax decidiu recrutar jovens nos clubes mais modestos, mas ao invés de os colocar a treinar nas próprias equipas deixa-os a representar os clubes de origem e, através do investimento na melhoria das condições desses emblemas, como sendo a colocação de bons treinadores, a modernização dos campos de treino, a disponibilização de materiais de apoio, e outras benfeitorias, ajuda a criar oponentes mais fortes e capazes de constituir maiores dificuldades aos seus jogadores. Esta medida incrementou a competitividade das competições e promoveu o desenvolvimento dos seus atletas pelo que os obrigou a crescer num contexto de maior adversidade.

Será relevante reter que é importante competir para consolidar aprendizagens, mas também importa ter presente que nem toda a competição permite evoluir e firmar talento. Por outro lado, sabemos que é possível evoluir com algum desequilíbrio, mas será muito difícil evoluir com diferenças que retirem toda a ilusão a toda a gente: atletas, treinadores e adeptos.

Nesse sentido, e tal como nos ensinam momentos como o do último sábado no Jamor, não é suficiente haver regulamentos quando os momentos exigem essencialmente bom senso. Já é hora de todos os agentes desportivos assumirem a sua comparticipação e responsabilidade na defesa de um dos maiores espetáculos do planeta, sendo que esta conduta terá de passar por uma luta intransigente, em primeiro lugar, pelo desenvolvimento do talento como garantia de qualidade e em segundo plano, pela justa e honesta competitividade das provas como base de negócio atrativo para investidores e público em geral.

Assim, será chegado o tempo de escutar, respeitar e responsabilizar todos os intervenientes e particularmente aqueles que devem, na verdade, ter honras de protagonismo, pois são eles, atletas e treinadores, os maiores valores do jogo em conjunto com os adeptos que o suportam. A quem dirige cabe a, não menos fundamental, tarefa de usar do bom senso e políticas de desenvolvimento integrado em prol de um futebol que se constitua como um verdadeiro espetáculo desportivo sustentável, capaz de se munir de valores e fundamentos humanistas, libertando-o de interesses e carreiras unipessoais.
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