O fim da utopia digital

Depois de termos sido forçados ao virtual, no decorrer deste ano, corremos para os braços do físico. Sente-se até uma espécie de náusea, de reactividade contra a tendência digital. Há uma ressaca.

O ano passado o mundo parecia rendido à conectividade digital. A nossa existência rodava à volta dela. É verdade que, em paralelo ao teletrabalho, percebemos que dependíamos de coisas pouco virtuais, como médicos ou repositores de supermercados, dando-nos conta da natureza fictícia dessa relação, mas ela expandiu-se e consolidou-se.

Depois de termos sido forçados ao virtual, no decorrer deste ano, corremos para os braços do físico. Sente-se até uma espécie de náusea, de reactividade contra a tendência digital. Há uma ressaca. O romance com a tecnologia esmoreceu. A idealização das redes sociais dissipou-se. Há até cansaço das relações intersubjectivas mediadas dessa maneira.

Até há poucos anos havia um optimismo generalizado em relação ao digital. As sociedades contemporâneas depositavam todas as fichas nas fulgurantes tecnologias de comunicação. Hoje percebe-se que o optimismo era manifestamente exagerado. Atribuíamos à tecnologia uma capacidade desmesurada para solucionar problemas sociais, políticos e até ecológicos de todo o tipo. Nos debates sobre ambiente aparecia sempre alguém a dizer que a geoengenharia ou a nanotecnologia iriam solucionar a crise energética. Na educação tudo seria resolvido com mais geringonças tecnológicas nas aulas. E até os riscos de legitimidade política teriam solução com participação digital.

Não é uma questão ideológica. À direita ou esquerda, parecia existir a ilusão de que tecnologia nos iria eximir de processos deliberativos, ou de procurar acordos entre posições muito diferentes e em conflito. O mesmo com as redes sociais. Mais de uma década depois do seu surgimento fica exposto que o seu sucesso se deveu, em grande medida, ao fracasso de não termos conseguido erguer sociedades menos individualizadas, com vínculos sociais menos débeis e ligações organizativas mais sólidas. É nesse contexto, o de comunidades profundamente fragmentadas, que foram adquirindo protagonismo.

Não se trata de demonizar a tecnologia, que é óptima, mas a relação idealizada que estabelecemos com ela, ou as redes sociais, que têm potencialidades, mas que deixámos desregular, ao sabor de utilizações radicalmente mercantis. Os senhores do capital, uma vez esgotado o mundo real, passaram a colonizar o digital. É aí que estão as fortunas.

Os super-ricos, no início do ano, estavam com a cabeça na lua e vai daí começaram a investir em foguetões para colonizar Marte como anseia Elon Musk. Agora a sua grande preocupação já é a longevidade na terra e vai daí começaram a investir desenfreadamente em empresas tecnológicas que garantem que é possível reverter o processo de envelhecimento, como fizeram Peter Thiel ou Jeff Bezos. O futuro digital que imaginam tem pouco a ver com tornar o mundo um lugar melhor. É como se quisessem transcender inteiramente a condição humana e isolar-se do perigo real das mudanças climáticas, das migrações em massa, do esgotamento de recursos ou das pandemias globais. Para eles o futuro da tecnologia parece ter a ver com uma única coisa: escapar.

É como se os vencedores da economia digital estivessem à procura de uma saída de emergência, deixando alguns milhões de iguais, bem mais pobres, para trás. É como se estivéssemos a assistir a uma corrida em busca de transcender tudo o que é humano: corpo, interdependência, compaixão, vulnerabilidade, complexidade. É verdade. Nem sempre foi assim. Nos anos 1990 a tecnologia parecia a oportunidade para um mundo mais inclusivo, igualitário, a pensar no bem-comum e pró-humano. Esses tempos de utopia digital já lá vão. Em 2021 temos os super-ricos a tentar fintar até a morte e os remediados, depois do êxtase digital do ano passado, em ressaca, a tentarem ser simplesmente humanos, ligados uns aos outros. E quem sabe se esse não é o caminho.

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