O tratamento dos resíduos em Portugal, como na Europa, é cada vez mais central em matéria de proteção do ambiente e da economia circular. Isto é ainda mais verdade no que respeita aos resíduos elétricos e eletrónicos, uma fileira em crescimento acelerado, como se pode imaginar, e em que o tratamento e a reciclagem adequados dos materiais usados são, por isso, decisivos.

A legislação europeia é muito rigorosa nessa matéria e obriga ao cumprimento de objetivos quantificados por parte de cada Estado-membro. No centro do processo estão as entidades gestoras, que fazem a ligação entre os produtores e os operadores de resíduos e têm como principal missão garantir o cumprimento desses objetivos.

Infelizmente, não é isso que se passa, muito pelo contrário, como se pode verificar na recente apresentação de concursos por parte da Electrão, que no dia 19 de julho de 2021, lançou quatro procedimentos concursais, com vista à celebração de contratos com Operadores de Tratamento de Resíduos, para a prestação de serviços de tratamento e valorização de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (REEE), em que o aspeto mais preocupante passa pelo comprometimento das metas dos REEE, em Portugal.

A Electrão fixa metas de recolha e tratamento de REEE para 2022 e 2023 muito inferiores aos objetivos definidos quer em 2018, quer em 2019. De acordo com os Anúncios de Concurso, conclui-se que as quantidades de REEE que a Electrão se propõe recolher e tratar totalizam 16.662 toneladas para o ano de 2022, com um aumento para 17.994,96 toneladas para o ano de 2023, o que não se aproxima minimamente da meta a que a mesma se encontra obrigada.

Ora, nos termos da legislação em vigor e da licença da Electrão, esta entidade é obrigada ao cumprimento de metas de recolha. A partir de 2019, o objetivo de recolha torna-se equivalente a 65% do peso médio dos EEE colocados no mercado nacional, por categoria, nos três anos anteriores, na proporção da quota de mercado da Electrão, que equivale a 68%.

De acordo com os dados disponibilizados pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a meta de recolha de REEE pelas entidades gestoras sofreu um aumento exponencial no ano de 2019, correspondendo a 103.000 toneladas, face às cerca de 58.000 toneladas em 2018. Ora, na proporção dos 68% da quota de mercado da Electrão, a respetiva meta de recolha para 2019 encontrava-se fixada em 70.040 toneladas de REEE, ou seja, quase o dobro das 39.000 correspondentes ao ano de 2018.

Atendendo ao que é estabelecido pela Electrão nos anúncios de concurso lançado, verifica-se que as metas de recolha estabelecidas para os próximos dois anos são manifestamente insuficientes, ficando muito aquém daquilo a que a Electrão se encontra obrigada, muito abaixo da meta do ano de 2018, agravada ainda pelo facto da sua quota de mercado ser 68%.

Assim, é notório que as metas de recolha de REEE estabelecidas pela Electrão para os procedimentos concursais aqui em causa são manifestamente inferiores às prescritas pela Lei e pela licença que lhe foi atribuída.

‘Timing’ de lançamento dos concursos

Por outro lado, não deixa de ser curiosa a oportunidade do lançamento destes concursos num período em que se aguardava a promulgação pelo Presidente da República às alterações introduzidas ao Decreto-Lei n.º 102-D/2020.

Ora, no dia 22 de junho de 2021, foi aprovada pela Assembleia da República uma alteração ao Decreto-Lei n.º 102-D/2020, a qual foi aprovada pelo Decreto n.º 157/XIV, cujas alterações propostas e aqui aprovadas terão um impacto significativo nos procedimentos concursais promovidos pelas entidades gestoras, em virtude das alterações ao mencionado decreto, que salienta, nomeadamente:

«Com vista ao cumprimento dos objetivos e metas de gestão, os sistemas integrados devem tendencialmente evoluir no sentido de garantir a gestão financeira e operacional dos resíduos, em que a entidade gestora assume a informação e monitorização do circuito da gestão dos resíduos, sendo estes obrigatoriamente encaminhados para os operadores de gestão de resíduos através de procedimentos concursais que observem os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência, com inclusão e evidência obrigatórias de critérios e vantagens ambientais e económicas, (…) O anúncio dos procedimentos concursais e os termos dos mesmos; (…) Após validação por uma entidade independente, os resultados dos procedimentos concursais, em termos de identificação das empresas concorrentes e das empresas contratadas, no prazo de 10 dias úteis após o encerramento dos mesmos (…) Os critérios mínimos a observar pelos procedimentos concursais previstos no n.º 13 são estabelecidos pela APA, IP e pela DGAE, para cada fluxo específico, ouvidas as entidades gestoras, as associações representativas dos operadores de gestão de resíduos e demais entidades que se entenda relevante consultar.»

As alterações introduzidas produziram efeitos nos termos do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, ou seja, desde o dia 1 de julho de 2021, e a Electrão lançou os concursos sem a promulgação do Decreto n.º 157/XIV, o que veio a ocorrer no dia 28 de julho de 2021.

Este intervalo de tempo permitiu à Electrão, já sabendo das importantes alterações introduzidas nesta matéria, avançar com os procedimentos concursais em causa, omitindo a obrigatoriedade de observar o que viesse a ser estabelecido pela APA, IP e pela DGAE, para cada fluxo específico, ouvidas as entidades gestoras, as associações representativas dos operadores de gestão de resíduos e demais entidades que se entenda relevante consultar.

Assim, a Electrão claramente aproveitou-se um período de “quase” promulgação de um diploma para lançar concursos em desconformidade com a vontade do legislador e sem a transparência que deve necessariamente imperar na gestão de serviços públicos.

Para além disso, o lançamento destes procedimentos concursais violou o Código dos Contratos Públicos (CCP), dado que o método escolhido e utilizado pela Electrão foi um endereço de email para apresentação de candidaturas e resposta a pedidos de esclarecimentos, bem como para apresentação das propostas pelos concorrentes, o que é manifestamente violador tanto das disposições do Código dos Contratos Públicos, nos quais devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação.

Os esclarecimentos, as retificações e as listas com a identificação dos erros e omissões detetados pelos interessados devem ser disponibilizados na plataforma eletrónica de contratação pública e juntos às peças do procedimento que se encontrem patentes para consulta, devendo todos os interessados que as tenham obtido ser imediatamente notificados desse facto. Ora, mais uma vez, a Electrão viola manifestamente o estabelecido pelo CCP, ao prever, no Regulamento de Concurso e nos Anúncios de Concurso, que a apresentação de propostas deve ser feita através de e-mail para o endereço de correio eletrónico operacao@electrao.pt.

Desta forma, não foi dada aos concorrentes qualquer possibilidade de controlo externo da atuação da entidade adjudicante, desconhecendo estes, nomeadamente, que propostas foram apresentadas e por que entidades concorrentes, e até se foram admitidas a concurso propostas enviadas já fora dos prazos estabelecidos para o efeito, ou que tratamento foi dado pela Electrão aos diversos concorrentes.

Tendo em consideração todos estes aspetos, a Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente (AEPSA) entendeu ser incontornável tomar medidas para suspender os concursos em causa, através do mecanismo de providencia cautelar, interposta na devida altura do processo.

Numa altura em que o país assume metas ambientais europeias cada vez mais ambiciosas, este procedimento concursal não só compromete os objetivos nacionais de sustentabilidade ambiental, como revela um preocupante retrocesso nos princípios da circularidade da economia numa fileira de importância crescente, como é o caso dos REEE.

Portugal corre sérios riscos de incumprimento de objetivos ambientais, os princípios da transparência e da boa governação estão a ser postos em causa por uma entidade com uma posição dominante no mercado que, com a sua incapacidade de atingir os objetivos definidos, está também a condenar os operadores privados, as marcas e o país ao incumprimento das metas ambientais europeias e globais, a que estão obrigados, bem como a arriscar sanções e consequências graves para todas as entidades do sector.