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“Numa situação de crise profunda, as empresas confrontam-se com um sistema claramente pró-credor”

Os mecanismos para a recuperação de empresas em Portugal estão desajustados, numa altura em que é expectável que as dificuldades se avolumem, com o fim dos programas de apoio e das moratórias para atenuar os efeitos da crise pandémica.
24 Julho 2021, 18h00

Os mecanismos para a recuperação de empresas em Portugal estão desajustados das necessidades do mercado e do ciclo económico que estamos a viver, em resultado do choque provocado pela pandemia de Covid-19, que teve efeitos significativos na atividade económica. Em entrevista ao Jornal Económico, Paulo Valério, advogado e diretor executivo da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação (APDIR) explica que o sistema existente foi formatado num momento em que a economia se expandia, o que não acontece agora, e que os mecanismos criados para responder à crise não cumprem o objetivo. “Numa situação de crise profunda, as empresas confrontam-se com um sistema claramente pró-credor”, afirma, criticando, de seguida, o Governo pelo atraso na transposição da Diretiva de Insolvência, “que assume uma clara preferência pela reestruturação preventiva e pela via da recuperação”.

Defende que, “para acudir à situação atual e ao seu provável agravamento é necessário tirar o melhor partido dos instrumentos já existentes”, mas tendo em conta que o tecido empresarial é constituído por micro, pequenas e médias empresas, que deverão enfrentar mais problemas à medida que os programas de apoio sejam descontinuados. “É necessário dar-lhes a mão, tendo a lucidez de governar para a economia que temos e não para a economia que gostaríamos de ter”, sustenta.

 

Os atuais mecanismos para a recuperação de empresas são suficientes para responder às necessidades, especialmente num quadro de crise? Como os avalia?
A atual configuração dos mecanismos de recuperação resulta das alterações introduzidas no âmbito do Programa Capitalizar, em 2016. Vínhamos de um sistema desenhado na anterior crise, especialmente vocacionado para a recuperação dos devedores, sobretudo das empresas, o que, importa referir, também o tornava muito permissivo, em alguns aspetos. Porém, a reforma iniciada em 2016, num cenário de crescimento económico e otimismo generalizado, operou uma inversão total, privilegiando claramente a recuperação de créditos – especialmente bancários –, em detrimento da recuperação das empresas. Isso é evidente nas alterações ao regime do Processo Especial de Revitalização [PER], que colocaram o acesso pelas empresas dependente da “boa vontade” dos contabilistas, dos revisores [oficiais de contas] e de, pelo menos, 10% dos créditos não subordinados. Mas também [é evidente] nos vários instrumentos que foram criados de raiz, como os novos regimes de apropriação do bem empenhado no penhor mercantil ou de conversão de créditos em capital.

Esta opção era compreensível, naquele momento histórico, mas, atualmente, está completamente desajustada. De tal modo que, numa situação de crise profunda, as empresas se confrontam com um sistema claramente pró-credor, tendo dificuldade em recorrer ao PER, e encontrando no Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas [RERE] um instrumento claramente insuficiente.

É como estar a enfrentar uma tempestade com roupa de praia.

 

Quais são, em seu entender, os principais entraves que existem para os processos de recuperação das empresas e como podem ser solucionados?
O primeiro obstáculo está, conforme disse, num modelo desajustado à atual situação. Foi criado em 2016 num contexto completamente diferente.

Por outro lado, temos um problema ao nível da gestão. O nosso tecido empresarial é maioritariamente composto por pequenas empresas, de estrutura familiar e com uma abordagem muito conservadora. Isso impede que os problemas sejam identificados atempadamente ou que, mesmo quando o são, daí resulte uma iniciativa clara no sentido de encontrar solução. Mesmo em grandes empresas, também podemos identificar este padrão.

Por isso, diria que o mais importante é chegar cedo à recuperação. Seja através de uma renegociação extrajudicial com os credores; seja através de um modelo mais institucional, com o RERE e o PER à cabeça, sem esquecer que o próprio processo de insolvência pode servir para recuperar, sobretudo em situações mais dramáticas. Acresce que recuperação não se confunde com mera reestruturação de passivo. Normalmente, implica uma reorganização e reestruturação da própria empresa.

Depois, temos ainda um velho tema por solucionar, que diz respeito à efetiva articulação entre credores públicos (Segurança Social e Autoridade Tributária), o que, formalmente, até vai acontecendo, mas, na prática, não produz os resultados desejados.

Finalmente, embora tenha havido uma enorme evolução, sobretudo nos últimos 10 anos, é fundamental um esforço de qualificação e sensibilização de todos os profissionais envolvidos, o que inclui advogados, magistrados, administradores judiciais, contabilistas e consultores. É preciso olhar para os instrumentos de recuperação como verdadeiras oportunidades para preservar valor na economia, abandonando um certo preconceito que ainda existe e que, muitas vezes, leva até a processos de decisão completamente irracionais, desde logo por parte de alguns credores, que preferem perder tudo a receber alguma coisa. E o risco moral não pode explicar tudo.

 

Que balanço faz do RERE e do PEVE (Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas), os últimos mecanismos a serem criados? O que vieram acrescentar?
O RERE é uma espécie de “ben-u-ron”. Está vocacionado para empresas em situação de doença precoce, com poucos credores e pouca litigância. O facto de não beneficiar de um verdadeiro período de stand still torna a negociação muito difícil noutras circunstâncias. Também pode servir para fazer reestruturações com o Estado em condições mais favoráveis. Ou, então, para aliciar alguns grandes credores, sobretudo bancários, por exemplo, fazendo dações em pagamento em troca de benefícios fiscais.

Quanto ao PEVE, é um claro equívoco. Em breve fará um ano que foi aprovado e não sei se se contará pelos dedos de duas mãos o número de processos entrados em tribunal.

Isto deve-se, sobretudo, a dois fatores: primeiro, na prática, só é possível recorrer ao PEVE quem tenha o apoio prévio de credores que representem, pelo menos, dois terços do passivo; logo aqui, o universo de empresas elegíveis é dramaticamente baixo. Por outro lado, não é possível dar confiança às empresas, advogados, consultores e tribunais com um processo totalmente novo, quase experimental, para dar resposta a uma emergência.
Teria sido bastante mais razoável flexibilizar um pouco o acesso ao PER, aliás, tal como a APDIR propôs desde a primeira hora. E o tempo, claramente, veio dar-nos razão.

 

O que devia ser alterado para que o sistema, globalmente, funcionasse melhor? Já é altura de rever
o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas?
Para acudir à situação atual e ao seu provável agravamento é necessário tirar o melhor partido dos instrumentos já existentes. Diria que flexibilizar o acesso ao PER e criar um verdadeiro período de suspensão, no âmbito do RERE, seria um bom começo.

Quanto à revisão do código, que é absolutamente necessária, deverá fazer-se no quadro da transposição da Diretiva de Insolvência, que deveria ter sido transposta em julho deste ano. É uma diretiva que assume uma clara preferência pela reestruturação preventiva e pela via da recuperação, em geral, como forma mais célere e eficiente de preservar valor na economia. Infelizmente, o governo falhou o prazo de transposição e, mais grave do que isso, não se lhe conhecem, até agora, quaisquer documentos prévios, consultas ou reflexões consistentes sobre o tema. Dá ideia que é um trabalho que o Ministério da Justiça fará com enfado, em vez de lhe dedicar a atenção e entusiasmo necessários. Julgo que pagaremos cara esta opção.

 

Que expectativas tem quanto à evolução do número de insolvências e de empresas em recuperação, em resultado da crise pandémica, e como se deve enfrentar a situação?
Tenho dito várias vezes que não é preciso ter uma bola de cristal para antever o que nos espera mais para o final do ano, quando terminarem as moratórias, e que depois, ao longo de 2022 e 2023, o cenário agravar-se-á.

É preciso permitir que as empresas inviáveis sejam liquidadas, de forma célere, mas é fundamental garantir que todas as empresas viáveis consigam recuperar. Temos um tecido empresarial frágil, muito ancorado no turismo, hotelaria e restauração, pelo que qualquer tentação de fazer darwinismo económico nas atuais circunstâncias terá um efeito sistémico grave, em toda a economia. Não bastará apoiar os mais aptos, porque esses, infelizmente, não serão suficientes. É necessário dar-lhes a mão, tendo a lucidez de governar para a economia que temos e não para a economia que gostaríamos de ter.

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