Política

Avisar embaixadas de 'manifs' era prática dos governos civis, insiste Medina na AR. Equipa de dados da CML “falhou” fiscalização

Avisar embaixadas de 'manifs' era prática dos governos civis, insiste Medina na AR. Equipa de dados da CML “falhou” fiscalização
ANTÓNIO PEDRO SANTOS

Numa audição de quase três horas perante os deputados, Medina criticou “teses conspirativas” sobre o envio de dados da Câmara de Lisboa a embaixadas estrangeiras e responsabilizou as duas equipas da autarquia pelas falhas no processo. Mas garantiu que não está a sacudir a água do capote. “Não podíamos ter feito o que fizemos. Que mais se pode dizer?”

Fernando Medina insiste que o envio de dados pessoais de manifestantes a embaixadas estrangeiras é uma prática com origem no período dos governos civis, extintos em 2011. O presidente da Câmara de Lisboa foi ouvido esta quinta-feira no Parlamento a propósito do caso que envolve a violação da proteção de dados de dezenas de pessoas, cujas informações pessoais foram enviadas sem consentimento a uma série de representações diplomáticas em Portugal.

Medina notou que o que a autarquia herdou dos governos civis foi “a prática de envio [dos avisos] a embaixadas” e não que nesses avisos tivessem de ir contidos quaisquer dados pessoais. No entanto, justificou, essa prática fez com que a Câmara se tornasse “mero recetáculo, sem decisão de qualquer dirigente”. Depois da receção dessas informações, o que se seguia era “uma simples remessa de envio”, tal qual os avisos haviam chegado, “sem serem depurados de qualquer elemento”.

Para o provar, Medina apontou exemplos aos deputados das duas comissões onde foi ouvido: a de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias ea comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas.

Um desses exemplos remonta a 2002, altura em que o Governo era liderado por Durão Barroso, facto que Medina aproveitou para dar uma ‘bicada’ ao deputado da bancada laranja Carlos Peixoto, um dos mais vocais na crítica ao autarca.

Era um aviso integral”, ripostou Medina, enquanto lia o documento de 2002 enviado pelo Governo Civil da altura, liderado por Teresa Caeiro, com uma embaixada como destinatário. “Tem nome, presidente da associação X, morador na rua etc, código postal, mais [outra] pessoa, segundo nome, profissão, socióloga, moradora na rua etc. E [enviado] para a embaixada da Guiné-Bissau”, frisou, fazendo depois breve referência aos problemas democráticos nesse país.

Em relação aos governos civis, na contenda com o deputado do PSD, Medina disse ainda que era destes “a responsabilidade de aplicar, interpretar e especificar o que a lei [de 1974] definia” e que o que aconteceu naquela altura foi uma série de “situações diversas”, em que ora eram enviados dados integrais, como nesse caso de 2002, ora seguiam informações menores, como apenas o nome do promotor ou associação e o aviso da realização do protesto.

Gabinete de Medina avisado em 2019 mas “ninguém entendeu gravidade”

Numa audição de quase três horas, uma das perguntas dirigidas pelo deputado do Bloco de Esquerda José Manuel Pureza foi acerca das notícias de 2019 que davam conta de queixas de manifestantes pró-Palestina quanto ao envio de informação sensível à embaixada de Israel. Na altura, o gabinete de Fernando Medina respondeu que essa era “prática habitual” na Câmara.

Confrontado, Medina admitiu que essa resposta veio do seu gabinete pessoal. Só que o caso era diferente, defendeu. “A resposta não é de concordância de envio de dados pessoais, mas de que houve informação [enviada] à embaixada.” Ou seja, diz Medina que a sua assessoria achou que se tratava apenas do envio de um aviso de manifestação, não de informação sobre os promotores.

Certo é que bastava essa prática para incorrer numa série de irregularidades, a começar pelas regras internas. Medina assume que era esse o caso, mas diz que ninguém percebeu. Nem dentro nem fora do executivo.

“Suscitou-me algum alerta? Não, nem a qualquer vereador da Câmara. (...) O executivo da Câmara é um órgão plural, onde todos os partidos estão representados. Ninguém entendeu a gravidade.”

Aqui e ali, Fernando Medina foi pontuando as respostas com garantias de que não está a tentar passar responsabilidades ou desvalorizar o tema. Em resposta a Duarte Marques, do PSD, levantou a voz: “Eu disse, as coisas não correram bem, e num sítio que não podiam ter corrido. Quantas vezes o senhor deputado ouviu alguém assumir [culpas] assim?”. No comunicado enviado pela Câmara, lembrou também, “está escrito que o procedimento era impróprio”.

Outro momento. “Não podíamos ter feito o que fizemos. Que mais se pode dizer?”.

A dúvida sobre as competências dos diferentes gabinetes envolvidos nesta história tinha sido levantada minutos antes. O edil lisboeta centrou-se então na distinção entre um gabinete por si nomeado (como o que deu a resposta de 2019) e um gabinete de “um conjunto de funcionários do município, que tratam do expediente”, e que, segundo Medina, foram responsáveis por um procedimento burocrático automatizado, com os resultados que agora se conhecem.

O GAP, Gabinete de Apoio à Presidência, assim se chama a divisão que há uma semana Medina prometeu extinguir e substituir por outra, é esse conjunto de funcionários públicos.

E é com essa explicação que Medina justifica e mantém que nunca soube do caso dos ativistas russos, ou de outros, a não ser pela comunicação social, há cerca de duas semanas. O momento em que o autarca tomou conhecimento dos casos foi, de resto, uma das perguntas que mais se repetiram entre os deputados.

“Para restabelecer confiança nos serviços, devo propor exoneração” do EPD

A apontar para o futuro, Medina fez um regresso ao passado. O despacho de 2013 emitido por António Costa, e que, como o Expresso noticiou, foi ignorado durante todo este período, vai ser 'recuperado'. Isto é, a partir de agora a competência de gerir os avisos de manifestações “passa a estar delegada na Polícia Municipal e não num gabinete de expediente”. E a informação passa a ser enviada apenas para a PSP e para o Ministério da Administração Interna, como ordenava o referido despacho.

Seguem-se duas outras decisões (ou saídas), apontadas por Medina. A do funcionário do GAP, António Santos, “que obviamente já não desempenha funções”, e a do encarregado da proteção de dados (EPD), Luís Feliciano, cuja exoneração vai ser proposta.

Medina frisou que em 2018 foi criada uma equipa de proteção de dados, liderada por Feliciano, que tinha “como missão primeira assegurar que o RGPD [Regime Geral de Proteção de Dados] é devidamente implementado em toda a orgânica”. E essa implementação, pelo menos no caso das manifestações, falhou.

“Há uma falta com uma dimensão importante, quando uma unidade inteira de apoio ao serviço da presidência não tem os serviços avaliados em matéria de proteção de dados. Há uma falha nestes processos desde 2018”, apontou. “É por essa razão que entendo que, para restabelecer a confiança os serviços, devo propor essa exoneração.”

A responsabilidade política e as autárquicas

Da parte do PSD e do CDS houve referências a Jorge Coelho, ex-ministro do PS, que se demitiu na sequência da queda da ponte de Entre-os-Rios. Se Medina o homenageou e elogiou, após a morte de Coelho em abril deste ano, seria “coerente” seguir-lhe os passos e demitir-se também. Carlos Peixoto disse mesmo que se Portugal fosse diferente, o presidente desta autarquia “não teria hipótese de ser recandidato”. Pouco depois, André Ventura afinou pelo mesmo diapasão.

A sua preocupação é sobre a minha recandidatura”, atirou Medina a Peixoto. “Eu percebo bem.” À esquerda, João Oliveira, do PCP, acompanhou Medina na crítica a quem quer antecipar “o que não vai conseguir na rua” e aproveitar “uma certa campanha anti-Rússia”. Mas essas questões, vincou Oliveira, não diminuem a gravidade do caso, pedindo o PCP para saber que entidades, além de embaixadas, foram informadas sobre as manifestações.

Medina respondeu que teria de ser avaliado caso a caso e que, por isso, não consegue responder a essa pergunta. A prática de aviso a entidades tinha várias “diferenças e divergências”, mantendo-se como ponto comum o encaminhamento para os gabinetes do primeiro-ministro, do MAI, da PSP e da entidade que fisicamente estivesse próxima do trajeto da manifestação.

O Bloco de Esquerda também fez questões nesse sentido: os dados também foram enviados a empresas? O autarca não consegue responder “com certeza”, o que só acontecerá com uma auditoria mais fina do que a que foi esta semana apresentada. Medina justificou, aliás, que a auditoria foi interna porque, se fosse externa, “atiraria respostas para daqui a seis meses ou um ano”.

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