16 maio 2021 21:37
A dissecação surge em Diogo Bolota como a ténue linha que separa o desejo de vida da vertigem da morte
16 maio 2021 21:37
“Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo que o ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao lado do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso solicita, inquieta, fascina o desejo, que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado, ele se desvia. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbrio, com orgulho a ele se fia e o guarda.” Não sei se Diogo Bolota alguma vez leu este famoso texto de Julia Kristeva sobre a abjeção, mas, se não leu, descobriu o que ele diz de outro modo. Digo isto porque a experiência que nos propõe é uma verdadeira máquina de conciliação entre o desejo de ver e a recusa enérgica, quase física, do que se vê.
Esse movimento começa logo no modo como o espaço é abordado. Para receber “The Air-Conditioned Nightmare”, a pequena sala da galeria tornou-se um quarto escuro onde uma utilização cirúrgica da luz deixa ver um labirinto de presenças inquietantes. Com a intimidade dos nichos religiosos, espalham-se pela sala várias figuras brancas, feitas em gesso. Quando nos aproximamos, descobrimos que são moldes de animais dissecados (um coelho, um peixe, um galináceo, um lagarto), que exibem as vísceras como se fossem flores amadurecidas que nos atingem a partir de alturas diferenciadas da parede ou dependuradas do teto. Súbita e metodicamente, um flash ilumina brevemente este apocalipse animal, deixando ver duas ainda mais inquietantes presenças. A um canto do chão vamos encontrar um bife, um martelo e um bebedouro em forma de crânio humano aberto no topo, que parecem saídos de um ritual excêntrico e sinistro. Mas é no centro da sala que se encontra a aparição mais exuberante. Sobre uma mesa de rede, uma carcaça verdadeira de vaca mostra-se radial como uma águia de asas abertas.