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Malta vendeu nacionalidade a pessoas que passaram menos de três semanas no país ou que apenas alugaram um iate

A bandeira de Malta e da União Europeia hasteadas em La Valleta, a capital
A bandeira de Malta e da União Europeia hasteadas em La Valleta, a capital
NurPhoto/ Getty Images

Arrendar um apartamento para passar duas semanas de férias, fazer uma doação a uma organização de beneficência social local ou registar o uso de um iate por uns dias é suficiente para conseguir nacionalidade de Malta, um país europeu com acesso a todo o Espaço Schengen. E-mails da empresa facilitadora, a Henley & Partners, obtidos pelo "Guardian", revelam que a "ligação genuína" ao país que a lei exige não está a ser respeitada

Malta vendeu nacionalidade a pessoas que passaram menos de três semanas no país ou que apenas alugaram um iate

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Malta, membro da União Europeia e do espaço Schengen de livre circulação de pessoas, começou a vender a nacionalidade maltesa há mais de oito anos. Agora, o diário britânico “Guardian” descobriu e publicou documentos internos e comunicações por e-mail da sociedade de consultores Henley & Partners, especializada em emissão de vistos de residência e nacionalidade a estrangeiros com investimentos avultados em países da UE, que mostram que muitos dos clientes desta sociedade não tinham qualquer intenção de residir em Malta, nem sequer por curtos períodos de tempo.

Os pedidos de nacionalidade surgiram sobretudo de russos, chineses e sauditas, segundo as informações obtidas pelo jornal britânico, que pagaram pelo menos um milhão de euros pelos documentos de identificação. Quase todos passaram menos de três semanas no país ao longo do ano referente ao pedido de nacionalidade.

A Henley & Partners também opera em Portugal, no mesmo ramo de facilitação de acesso a residência e nacionalidade via investimento, que poderá acontecer depois de cinco anos como residente, segundo se lê no capítulo dedicado a Portugal na página da empresa na internet.

Em Malta, o tempo de residência necessário fixado para se poder pedir nacionalidade é de apenas 12 meses mas, nas 250 cartas de “intenção de residência”, escritas por clientes da sociedade e revistas pelos jornalistas do “Guardian”, poucas referiam qualquer intenção de residência. A pergunta mais comum encontrada nos e-mails trocados entre o putativo residente e o seu representante na Henley foi: “Qual é o mínimo tempo que tenho de permanecer em Malta para ser elegível para passaporte?”

Num caso de 2014, um proponente com origem num país do Médio Oriente pergunta a um funcionário da Henley se “ficar em Malta entre 7 a 14 dias” seria suficiente para “concluir os requisitos biométricos” e para “receber o cartão de residência”.

Depois de responder ao cliente que “o Governo gostaria de poder analisar uma carta de intenções escrita por cada um dos proponentes detalhando de que forma pensam estabelecer residência e uma ligação genuína com o país”, o funcionário acabou por concluir o e-mail dizendo que, “na realidade, nenhum proponente vê a sua inscrição para nacionalidade negada por causa destas cartas” e acrescentou que, caso não fosse possível permanecer por mais tempo no país, então abrir uma conta num banco local, fazer uma doação a uma organização de solidariedade social ou uma inscrição em alguma associação recreativa em Malta poderia servir para provar as ligações ao país.

O negócio da venda de passaportes não é um segredo nem um exclusivo de Malta mas nem por isso deixa de ser controverso já que permite que quase qualquer pessoa, apenas por ter uma fortuna que o torne possível, possa ser cidadão europeu.

Em Portugal também existe forma de obter vistos de residência mediante investimento, são os chamados vistos gold, mas este tipo de documento não prevê a entrega de um passaporte a quem investe, apenas a residência. A nacionalidade pode ser pedida cinco anos depois.

Bruxelas já por diversas vezes se manifestou contra a venda de nacionalidade europeia, seja diretamente seja através de investimentos. Já no fim de 2020, os eurodeputados destacaram os riscos inerentes a estes programas, nomeadamente o branqueamento de capitais, evasão fiscal e corrupção, defendendo que a Europa "não deve ter uma entrada rápida para criminosos", citava, na altura, a agência Lusa.

Em novembro de 2020, a Comissão Europeia abriu um procedimento de infração contra Malta e Chipre devido a programas deste género, que atribuem nacionalidade a investidores estrangeiros e que existem, em diversos formatos, em 19 Estados-membros.

No caso de Portugal, espera-se que o oficialmente chamado caso de Autorização de Residência para Investimento, em vigor desde 2012, venha a sofrer restrições para limitar o investimento em imobiliário no Porto, Lisboa e Litoral. Alguns analistas do setor acreditam que isto irá eventualmente conduzir ao fim destes vistos, por faltar um factor atrativo.

A Comissão Europeia decidiu, em 2014, que os Estados-membros só podiam dar passaportes a pessoas com a tal ligação genuína e Malta emitiu na altura um comunicado destinado a resolver a questão, anunciando que só com um ano de residência no país seria possível pedir nacionalidade, mas a lei que regula o programa não oferece uma definição de “residência” e os contactos encetados pelo “Guardian” também não foram bem-sucedidos em obter de nenhum governante o número de dias ou meses que uma pessoa tem estar fisicamente presente em Malta para que possa pedir um passaporte.

“NÃO QUERO SABER DESDE QUE ESTEJA EM LINHA COM O ESQUEMA”

De entre as 250 cartas que o “Guardian” analisou, a média de permanência no país dos proponentes foi de 16 dias. Mas nos e-mails são revelados outros detalhes sobre a relativa permissividade do esquema. Um cidadão chinês arrendou uma casa por cerca de €1700 por mês, com dois quartos, mas pediu passaporte para 12 pessoas, seis menores.

Um cidadão da África do Sul recusou-se a pagar à Henley uma quantia para gestão do apartamento porque “absolutamente ninguém vai utilizar o espaço ao longo do ano”. Num outro e-mail, um cliente pede à própria consultora que encontre um espaço para ele arrendar, já que comprar ou alugar um imóvel é um requisito do esquema. Quando o funcionário da Henley lhe perguntou que tipo de casa gostaria de comprar, a baliza do preço e outros detalhes, o putativo maltês respondeu: “NÃO QUERO SABER, O QUE FOR MAIS BARATO E ESTIVER EM LINHA COM O ESQUEMA”.

As ligações do dono da Henley & Partners ao próprio esquema

A Henley & Partners é uma consultora criada por um suíço, Christian Kälin, que segundo o “Guardian”, é como um “pai da indústria de planeamento de cidadania”, um ramo que movimenta qualquer coisa como 3 mil milhões de dólares por ano. Kälin esteve envolvido no próprio desenho do esquema aprovado depois pelo Governo maltês - e seria para Malta que o empresário suíço viria a encaminhar muitos dos seus clientes, beneficiando das lacunas da legislação que a UE tinha avisado que deveriam ser suprimidas e é muito provável que volte agora a tentar entender as suas falhas. A Henley & Partners poderia até ter ficado com o monopólio deste negócio em Malta, era esse o acordo num primeiro momento, mas depois de se tornar público a polémica foi demasiada para que o Governo pudesse apoiar um esquema com tão pouca (nenhuma) concorrência.

O governo maltês rejeita qualquer sugestão de que o seu requisito de residência seja uma farsa. Nada do que vem escrito no “Guardian” foi desmentido mas uma fonte do Governo maltês disse que é o próprio país, e não a UE, quem tem a última palavra jurídica sobre quem pode receber um passaporte maltês e que os requerentes desta identificação europeia são investigados antes de receberem uma autorização de residência.

Em resposta à investigação, a Henley & Partners emitiu um comunicado bastante longo, no qual também não nega qualquer das informações do diário britânico. “Estamos totalmente cientes dos riscos potenciais inerentes ao tratamento das solicitações de residência e cidadania dos clientes e investimos tempo e capital significativos nos últimos anos para criar uma estrutura de análise dessas candidaturas que respeitem os mais elevados padrões”, lê-se no comunicado. “No entanto, em última análise, é responsabilidade dos próprios países investigar e examinar os candidatos. Como uma empresa privada, não somos obrigados por lei a fazê-lo, nem temos acesso ao mesmo nível de informações, historial da pessoa, seus contactos ou recursos que têm as autoridades governamentais”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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