Sociedade

Cancro infantil. “Até as crianças pequenas podem ter consciência de que algo não está a correr bem”

18 fevereiro 2020 21:39

Luís M. Faria

Jornalista

fatcamera/getty images

Há cerca de 400 novos casos de cancro infantil por ano em Portugal, o que representa mais ou menos um por cento de todos os cancros. A esperança é a de que termine tudo bem, como acontece atualmente em 80 por cento dos casos, uma evolução drástica em relação aos 10 a 20 por cento que se verificavam nos anos 1960. “Sobreviviam sobretudo os doentes que estavam na dependência quase exclusiva da cirurgia”, explica ao Expresso Filomena Pereira, diretora do serviço de pediatria do Instituto Português de Oncologia

18 fevereiro 2020 21:39

Luís M. Faria

Jornalista

Se o cancro é uma doença terrível, o cancro infantil é especialmente desolador, por atingir as pessoas mais frágeis. Mas até na doença pode às vezes haver lugar para o riso. Num seminário sobre oncologia pediátrica que a Fundação Rui Osório de Castro organizou na Fundação Gulbenkian, alguém contou a história de uma criança que se encontrava internada no Instituto Português de Oncologia (IPO) e viu a sua professora entrar-lhe no quarto. Surpreendida, a criança soltou um desabafo: “Até aqui?!”.

Foi uma das histórias que animaram, no sábado passado, na Gulbenkian, a propósito de um tema que não associamos ao humor. Outras, sem fazerem rir, deram motivos de esperança, como a daquele casal que estava presente com os seus três filhos, incluindo uma menina que teve cancro aos nove anos e foi tratada com sucesso. Atualmente com doze anos, a rapariga tem cabelo longo e um ar saudável. A visão dela e dos seus dois irmãos mais novos era testemunho de que, embora um diagnóstico de cancro numa criança mude sempre drasticamente a vida da família, não se deve partir do princípio de que a mudança vai ser para sempre.

Há cerca de 400 novos casos de cancro infantil por ano em Portugal, o que representa mais ou menos um por cento de todos os cancros. Em percentagem, não parece muito, mas cada caso é uma tragédia. A esperança é que termine bem, como acontece já em 80 por cento dos casos – uma evolução drástica em relação aos 10 a 20 por cento que se verificavam nos anos 1960. “Sobreviviam sobretudo os doentes que estavam na dependência quase exclusiva da cirurgia”, explica Filomena Pereira, diretora do serviço de pediatria do Instituto Português de Oncologia (IPO) em Lisboa. “Não é o caso das doenças mais frequentes, ou neste momento de praticamente todas”.

Os fatores de evolução positiva

Quais são as formas de cancro mais frequentes nas crianças? “As leucemias estão à cabeça. A seguir vêm os tumores do sistema nervoso central. Os terceiros serão os linfomas, e depois entram os outros todos, com uma percentagem pequena e variável”, diz Filomena Pereira.

“O grande problema da oncologia pediátrica é o número”, explica. “Nós tratamos todos os tumores da criança. Nos adultos, o número permite haver várias áreas subespecializadas. Serviços de cancro do pulmão, serviços de cancro da mama, serviços de cancro da próstata… Nós em pediatria tratamos todo o cancro infantil, no seu conjunto. Obviamente que dentro dos serviços há pessoas que estão mais vocacionadas para uma patologia particular, e servem de consultores para todos os outros em relação a essa patologia”.

Atualmente, o Instituto tem relações permanentes com grupos internacionais de tratamento das doenças em causa. "Há vinte ou trinta anos, estávamos pouco acompanhados. As ligações eram esporádicas. Hoje são organizadas, portanto as estratégias terapêuticas são as que se utilizam a nível internacional. Não fazemos nada sozinhos”.

O que justifica uma evolução tão radical das taxas de sobrevivência em poucas décadas? Filomena Pereira sintetiza a história: “Há uma fase, aí pelo final dos anos 1970, anos 1980, em que entram fármacos novos. Depois, nos anos 80-90, começa a melhorar muito o suporte: o tratamento das infeções, a qualidade das transfusões, o tratamento da dor… Antigamente, as crianças não iam aos cuidados intensivos. Neste momento, eles são um parceiro imprescindível no tratamento de fases críticas destas crianças”.

Insiste na importância das ligações a grupos internacionais de tratamento do cancro infantil, de onde emergem normas e protocolos terapêuticos que vão melhorando a resposta aos tratamentos. E, concluindo a descrição, fala em “alguns fármacos que começam a emergir no domínio da imunoterapia, sobre cuja eficácia a longo prazo ainda não temos dados, mas que aparentemente serão promissores para ajudar a melhorar a sobrevivência nalgumas patologias”.

Menciona as Car-T cells, que nota serem pretexto para manchetes pelo mundo fora. “Embora haja já alguns estudos nesse sentido, estamos longe de poder dizer que tratamos tudo com Car-T Cells. Temos doentes que já fizeram, como o Porto tem. Não muitos”. Resultados? “É tudo muito precoce”, diz com cautela.

Com a família 24 horas por dia

O IPO de Lisboa cobre a área de Leiria para Sul, e ainda as ilhas da Madeira e Açores e doentes dos PALOP, cobertos por protocolos em vigor desde há algum tempo. No caso destes últimos, explica Filomena Pereira, o problema é que frequentemente chegam demasiado tarde a Portugal. Em relação aos portugueses, as dificuldades podem ter a ver com distância física, com a necessidade de deslocação a Lisboa e de permanecer na cidade durante algum tempo. Ou seja, muitas vezes são dificuldades financeiras e laborais.

Convém notar que nesta área, como em muitas outras, há por vezes discriminações entre os diferentes tipos de trabalhadores. No que respeita a licenças de acompanhamento, por exemplo, a situação de um freelancer nada tem a ver com a de um funcionário, e mesmo entre funcionários públicos e privados podem existir diferenças importantes.

Algumas associações de pais e amigos dão apoio nessa área – a Acreditar, a mais antiga nessa área, proporciona, entre outras coisas, habitações onde podem ficar famílias cujas crianças têm de se deslocar para fazer tratamentos – mas estão longe de chegar para as necessidades. E mesmo quando a família tem alojamento assegurado, o facto de ser obrigada a interromper o seu trabalho pode implicar consequências a nível de carreira, ou eventualmente a própria perda do emprego. Foi um dos aspetos discutidos no seminário da Gulbenkian.

O IPO funciona em ligação permanente aos hospitais e é nestes que surge normalmente a suspeita inicial. Discutido o caso, se se justificar, a criança é enviada para o IPO, onde são feitos os exames necessários. Se for diagnosticado cancro, a criança fica a ser tratada no IPO (no caso dos recém nascidos é preciso esperar pelo menos pelo mês de idade para poder ser internado, embora o tratamento esteja a cargo do Instituto).

“Nas leucemias mais comuns, o internamento dura à volta de um mês. Noutro tipo de leucemias, podem ter não um mas dois ou três internamentos dessa natureza. Depende das patologias”, diz Filomena Pereira. Enquanto a criança estiver no IPO, os pais devem acompanhá-la 24 horas por dia, embora possam ser substituídos por outra figura de referência - um avô ou um irmão mais velho, por exemplo – se houver necessidade. Isso é uma regra no IPO desde sempre.

“Habituam-se ao serviço”

O desenvolvimento físico e mental das crianças implica formas diferentes de encarar a doença. “Os bebés pequenitos não sabem que estão doentes”, explica Filomena Pereira. “Os meninos na idade pré-escolar, dois, três anos, quando se sentem bem e as suas necessidades de criança estão satisfeitas – acompanhamento, tipo alimentar, brincar, espaço, atenção – acabam por gerir isto com facilidade. Depois temos aqueles meninos de idade escolar, que têm de ser conversados e vão fazendo isto uns mais facilmente do que outros. A seguir há os adolescentes, uma população mais parecida com os adultos, até na forma como reagem à terapia. São doentes diferentes, e com esses as coisas tornam-se um bocado mais complicadas em termos de adaptação à doença. Neles há muito que transpor e o interlocutor passa a ser primordialmente o adolescente, já não os pais”.

A incidência da doença, em termos estatísticos, varia com a idade? “Sim. A taxa maior é no primeiro ano de vida”, responde a médica. “Depois temos um pico por volta dos quatro anos, e há outro pico na adolescência. No fundo, corresponde muito aos picos de crescimento da criança”. Os tipos de cancro também variam um pouco. Muitas crianças, mesmo até aos seis anos, conseguem lidar bem com o internamento. “Habituam-se ao serviço”, diz. “Como se sentem cuidados e bem tratados, acabam por integrar isto no seu quotidiano normal. E a coisa vai-se fazendo”.

Como lidam as crianças com o medo e a revolta? “Até as crianças pequenas podem ter consciência de que algo não está a correr bem. Se as coisas estiverem mal, garanto que aos três, quatro anos eles sabem perfeitamente”, diz. “Quanto à revolta, pode ser precoce. A criança deixa de poder ir à escola, de poder estar com os amigos, passa a estar muito mais constrangido. Aí já há níveis de revolta importantes. Mas acontece sobretudo na pré-adolescência e na adolescência”.

É quando as crianças estão a construir a sua independência como seres, explica. “No momento em que eles estão a ganhar asas, elas são-lhes cortadas. Voltam a ser mais dependentes, agora não só dos pais. São afastados dos pares. Além disso, sofrem modificações do seu aspeto físico. Isto é algo muito importante para os adolescentes, embora eu ache, apesar de tudo, que o afastamento dos pares é o mais difícil de gerir, obviamente junto com o medo da doença e das suas consequências”.