Política

“Mostras de imaturidade”: livro relata vida de Bolsonaro nos quartéis

‘O Cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel’ apresenta outra versão para a sua absolvição por terrorismo

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A certa altura da sessão secreta que julgou o réu Jair Bolsonaro no Superior Tribunal Militar, o ministro Aldo da Silva Fagundes, gaúcho de Alegrete, achou por bem fazer um “pequeno registro de caráter psicológico” do capitão. “Seria um insano?”, perguntou-se. “Há certas infantilidades, certas atitudes que surpreendem, mas é muito difícil concluir pela insanidade mental deste homem.” Escusas ao tribunal, definiu Bolsonaro com “um termo da fronteira do Rio Grande: um touro de forte, um gringo de 1,80 metro de altura e 90 quilos, atleta, desportista, afora essas pequenas infantilidades, teve algumas atitudes em que revelou até muita presença de espírito”. Como exemplo citou o resgate do soldado Negão Celso, cujo afogamento fora evitado pelo capitão que primeiro se atirou na água. “Seria um homem radical, interessado em subverter a ordem pública, um terrorista, enfim?” Fagundes, que tinha sido deputado pelo MDB, não achava tanto. Inclinava-se mais a considerar que a psique do jovem Bozo sofria de um “deslumbramento social” trazido à tona por sua foto na última página de Veja, onde dois anos antes reclamara do soldo (naquela época, 1986, ainda não havia o Queiroz).

O relato acima (menos o Queiroz) é uma das tantas pérolas reunidas pelo experiente repórter Luiz Maklouf Carvalho, lotado hoje em O Estado de S. Paulo, para o livro O Cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel, lançamento da auspiciosa Editora Todavia. Não foi por reclamar do salário, no entanto, que fora parar no banco dos réus, embora a situação se configure como quebra da hierarquia militar. Em 1987, a mesma revista Veja acusou os capitães Bolsonaro e “Xerife” (Fábio Passos, descobriu-se depois) de planejarem “explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ) e em vários quartéis”. O suposto plano tinha um suposto nome que cairia bem ao suposto programa do atual governo, Beco sem Saída.

O apelido equestre foi conquistado na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, em Resende

A reportagem foi desmentida por Passos e Bolsonaro, pelo Comando Militar do Leste, a que estavam subordinados, e pelo ministro do Exército do governo Sarney, general Leônidas Pires Gonçalves. Em sua edição seguinte, a de número 1.000, a revista chamou os oficiais de mentirosos e publicou dois croquis que teriam sido entregues pela dupla à jornalista Cassia Maria, da sucursal do Rio de Janeiro, então comandada por Ali Kamel – o poderoso chefão, hoje, do jornalismo da Globo. Segundo a reportagem, um dos desenhos representaria as tubulações da adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento de água do Rio de Janeiro, marcadas com um “petardo de TNT”.

“A revelação de Veja foi bombástica, com o perdão do trocadilho, e a partir daí travou-se uma guerra de versões”, escreve Maklouf. “Bolsonaro manteve-se na posição de que Veja havia mentido – sustentada até hoje – e Veja jamais recuou das informações publicadas.” O caso transformou-se no inquérito que acabaria por levar Bolsonaro ao banco dos réus. Maklouf teve acesso à documentação completa do caso, incluindo o áudio da sessão secreta de julgamento. Pela primeira vez, desfaz-se a argumentação do atual presidente de que houve empate em 2 a 2 nos laudos periciais grafotécnicos que analisaram os croquis, com o consequente in dubio pro reo. “Ocorre que nunca existiram quatro laudos. Apenas três – dois deles afirmando que o capitão era o autor dos croquis e, portanto, culpado. Foi como contar como válido, no final do jogo de futebol, um gol anulado pelo juiz.”

“A sessão secreta do julgamento do STM – como mostra o áudio, com mais de cinco horas de duração – foi cheia de singularidades. Uma delas é Veja e sua repórter terem virado saco de pancadas dos ministros militares. Outras permitem aventar, com base também na análise da documentação, um jogo combinado para preservar o capitão – o espírito de corpo militar, dito de outra forma –, desde que ele apressasse sua saída do Exército. E foi o que ele fez, seis meses depois, sem a mácula indelével de uma condenação, depois de se eleger vereador no Rio de Janeiro.” Como se vê, Veja é duplamente culpada pela ascensão de Bozo. Criou o monstro ao supostamente fazer jornalismo. Ajudou-o a chegar aonde chegou quando deixou de fazê-lo, em tempos recentes. Agora estamos aí, comendo o pão que Ali Kamel amassou.

O Cadete e o Capitão não se resume ao imbróglio do Beco sem Saída, embora seja ele todo um conjunto contundente de indícios para compreender o atual beco sem saída. O livro trata também da infância do capitão no interior de São Paulo, seu ingresso na Escola de Cadetes de Campinas, em 1973, e na Aman, no ano seguinte. Na Academia, o pai de 01, 02 e 03 era o 531. Ou “Cavalão”, apelido constante em documentos oficiais. Cavalão nunca foi exatamente um ás.

A melhor posição que ocupou entre os 386 alunos de sua turma foi o 48º. Como paraquedista, saltou 44 vezes. Numa delas, pegou um pé de vento e quase foi atropelado na Avenida das Américas, na Barra da Tijuca. Não escapou, no entanto, de chocar-se fortemente contra um edifício. Quebrou os dois braços, rachou o capacete e despencou 8 metros, caindo, infelizmente, de pé.

Nas avaliações e documentos de promoção dos oficiais, há inúmeros elogios a Cavalão. A despeito disso, em 1983, seu comandante, o coronel Carlos Alberto Pellegrino, anotou: “Deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de ‘garimpo de ouro’. Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Cinco anos depois, no julgamento que terminou por absolvê-lo, o ministro Fagundes, aquele que se permitiu analisar a psique do Cavalo que chegaria à Presidência, classificou-o como “um homem honrado, um homem digno”. Estamos vendo.

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