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Trombadas

A coleção de Joyce

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

29/09/2022 04h00

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Porra, meu, ontem eu tava pensando: e se o Abujamra tivesse me convidado praquele programa de entrevistas dele e me perguntado "Joyce, o que é a vida?". Manja o "Provocações" na TV Cultura? Então. Eu me imagino sentada lá diante do Abujamra respondendo a essa pergunta. Só que ele morreu e nunca me convidou. Aí me aparece você, um cara que faz perguntas. Então me pergunta o que é a vida, vai. Pergunta, faz favor.

-- Joyce, o que é a vida?
-- É uma foda. Basta você saber se é uma foda que vai te dar prazer ou dor. Eu tive os dois em grandes volumes. São irmãos. Caim e Abel. O negócio é não deixar a dor matar o prazer.

-- Joyce, o que é vida?
-- Um coito. Tem gente que acha que a vida é sexo, deus, morte, poder, dinheiro. Pra mim tudo isso aí cabe dentro de um coito.

-- Joyce, o que é a vida?
-- Uma trepada, meu. Uma bela de uma trepada.

Eu sou intensa, viu. Não, claro que não viu. Mas vai ver. Vou te contar umas historinhas aleatórias que dão uma boa coleção de mim. E já aviso pros hipócritas facilmente escandalizáveis: se você não divide a cama comigo e nem paga as minhas contas, não lhe devo satisfação, tô nem aí pra sua opinião. E também não estou bêbada, tá?, porque não bebo sozinha em casa. Se você abrir a geladeira tem sete cervejas. Tão ali do jeitinho que meus amigos da Gaviões da Fiel deixaram domingo retrasado, quando vieram ver o jogo comigo. Não tô mais indo no estádio. Faz um ano levei um tombo, quebrei o fêmur, passei por cirurgia e ainda preciso dessa bosta de andador. Tá foda, meu. Te incomoda se eu fumar?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Quando começou esse negócio de internet eu fui logo pros jogos. Eu jogava no Orkut um treco chamado Pot Farm, que era uma fazenda de maconha. A gente plantava, colhia, fazia bolos, tudo de ganja virtual, e se comunicava por chat com gente do mundo todo. Nessa arrumei um namorado em Montana, nos Estados Unidos. Nunca nos vimos pessoalmente, só pela internet. E toda semana ele me mandava flores. Rosas vermelhas, ramalhetes imensos. Eu dizia: Ô, meu, para com isso, que a minha casa tá cheirando cemitério. Tô vendo a cara do sujeito aqui na minha frente, ele tinha um cabelo ruivo, uma barba bem cheia, mas esqueci o nome. Como chamava mesmo o punheteiro, meu deus? Bom, não vem ao caso. Mas por que eu falava disso? Ah, sim. Então. Um dia ele disse "vou gravar um vídeo pra você". Super legal o vídeo. Mostrava as montanhas, a cidade limpinha, bem cuidada, a casa dele, a casa da mãe dele, a rua, o jardim, até que, pá!, do nada corta o filminho e o cara me aparece batendo uma?! Porra! Fala sério! Como eu tinha aprendido a hackear com outro amigo do jogo, mandei um trojan pro americano. "Agora vou sacanear esse filho da puta." Do meu computador eu abria e fechava o CD-ROM dele, botava foto minha no descanso de tela, tocava música de madrugada. Ele desesperado, assustadíssimo: "Joy, estão acontecendo coisas estranhas na minha casa". Jura? Acho bom você se cuidar. Depois apaguei uma pasta de fotos pornô que ele tinha no HD e deixei uma mensagem: Vai pro inferno, seu cretino. Foi quase um ano de relacionamento.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Eu nasci numa família rica. Meu pai era industrial, tinha uma fábrica de embalagens. Sou a mais velha de três irmãos, a única menina. Fiz todo o caminho de filhinha de papai: até em colégio de freira eu estudei. Com a minha mãe nunca me dei bem. Meu pai era gaúcho, então você sabe como é. Fui criada pra ser prenda, como eles dizem no Sul: cozinhar, passar, pregar botão, casar, cuidar dos filhos. Mas lá pelos 15 veio a fase da rebeldia e eu acho que ela nunca passou. Aos 17 cismei que queria fazer uma tatuagem na bunda. Porque era bonito. Anos 70, imagina. Fui tatuar com o Lucky Tattoo em Santos. Lucky Tatto, porra! Era um dinamarquês doidão, primeiro tatuador profissional do Brasil, diz a lenda que ele trouxe a primeira maquininha elétrica pra cá. O estúdio ficava no cais do porto, um muquifo frequentado só por marinheiro, puta, estivador e bandido. Hoje, quando vou me tatuar, eu conto que tenho uma do Lucky e a molecada me venera. É uma borboleta. Eu te mostro. Magina, meu, te mostro, peralá. Um traço bem naif, vê? Desenho de criança. Mas as cores continuam intactas. Não desbotaram em mais de 40 anos. E como eu tenho a pele boa, que ajuda a preservar, então eu digo que a minha bunda será histórica. Quando eu morrer ela vai valer uma grana, já avisei pros meus filhos e netos. Aí eu tava te dizendo: a primeira vez que pulei na piscina do Pinheiros com essa tatuagem na bunda foi um escândalo. Coitado do meu pai. Hoje tenho 23 tattoos. E continuo sendo um escândalo. Sou uma mulher grande, tenho 1 metro e 80. Já pesei 153 quilos. Aquele quadro ali sou eu na fase gorda, pintada pelo Ivald Granato. Aos 40 anos eu fiz cirurgia bariátrica e cheguei a 70. Agora bati nos 90, porque a pandemia me estragou. Operei o fêmur, a coluna, a vesícula, aí soro, cortisona e o cacete, pouco movimento, incha mesmo. Mas sempre fui alta, muito branca e tive cabelo vermelho. Ah, sou canhota também. Ou seja, sempre chamei a atenção. Hoje sou tudo isso, menos ruiva, só que velha. Uma velha toda tatuada. Idosa é o cacete. Prefiro ser velha.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ali pelos 18, 19 meu barato era ir pra Camburi. Eu ia, ficava uns tempos com os riporongas e voltava. Ia, ficava, meu pai mandava grana por São Sebastião, e voltava. Já morava sozinha, tinha carro, só fazia o que eu queria. Eu namorava um menino de 16 anos que roubei de um amigo. Fomos passar o Réveillon de 1979 em Camburi. Uma loucura. Todo mundo tinha levado ácido. Aí o Vagnão, amigo nosso, apareceu todo sujo de barro e falando assim: "Turma, vocês vão ter que me emprestar umas roupas, porque larguei até as cuecas no mato. Tô sem nada". Mas e essa mochila aí, Vagnão? Ele tirou das costas, abriu e era só cogumelo dentro. Menino, não sei como me lembro dessas coisas! Será que lembro ou tô inventando? Ah, não. Foi especial demais, não tinha como esquecer. À meia-noite, todo mundo chapado pulando ondinhas na areia achando que era mar e pescando os plânctons iluminados que saíam da água e flutuavam até as estrelas. Olha a viagem! No dia seguinte, muita gente ainda louca pelo chão da casa, eu abro a janela do quarto e dou de cara com um deus. Que homem lindo, putaquepariu! Ele era fotógrafo. Levei o namoradinho de 16 anos na rodoviária, despachei ele de volta pra mãe dele em São Paulo e me joguei nos braços do fotógrafo. Meu primeiro grande amor. Voltamos pra São Paulo e continuamos juntos. Ele trabalhava de dia e de noite ia pra minha casa. Bebíamos vinho de garrafão e nos amávamos. Era uma rotininha de casal, saca? Eu me sentia tranquila e feliz. Mas aí uma manhã ele saiu pra trabalhar e não voltou. Dia seguinte, nada. Dois dias, nem sinal. Fui na casa dele e toquei a campainha:

-- Qual é, meu?! O que aconteceu?!
-- Não tenho nada pra falar com você.
-- Como assim?! Me fala o que houve.
-- Nada.
-- Pelamordedeus, não faz isso comigo.

E até hoje eu não sei o que rolou. Terminou desse jeito. Sofri para caralho. Dor de amor é um troço terrível. Se eu ainda sinto alguma coisa? Esses dias vi uma foto dele no Facebook. Tá velho, gordo e com o cabelo mal cuidado, um horror. Sei lá. Acho que ele perdeu mais do que eu.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Mas aí, pra me livrar dessa fossa sem fim, me casei. Puta cagada, lógico. Você acha que ia aparecer um homem de história fácil na minha vida? Nunca. Ele era alto, loiro, de olhos verdes, manequim do Dener, lindo de morrer. E tinha sido preso no Carandiru por roubo de carro. A primeira vez que a gente se viu eu tava tentando chupar gasolina do tanque do Landau do meu pai. Ele passou e "quer ajuda?". Opa, claro. Na época eu usava uma gargantilha com meu nome. Quando fui entrar na fábrica de papai, o sujeito me diz assim: "Joyce, você vai casar comigo". Ai, putaquepariu, era só o que me faltava. Ele ficou no meu pé um tempão, mas eu estava apaixonada pelo fotógrafo. Quando o desgraçado me chutou eu pensei: Ah é? Se você não quer, tem quem queira. No dia do noivado, ele me levou no Pedrinho, que era dono de umas das maiores bocas de fumo de São Paulo. Amigo que ele tinha feito no Carandiru. À certa altura saímos de lá e fomos a uma agência da Caixa Econômica. O Pedrinho pediu o cofre dele, abriu pra gente e falou: "Deve ter um par de alianças aí. É de vocês. Meu presente de noivado". Depois voltamos muitas vezes, porque no escritório do Pedrinho a gente cheirava a cocaína de uso pessoal dele, e não a que ele misturava com ácido bórico pra vender. Cé tá entendendo, meu? Eu casei mesmo assim. Na porta da igreja, de braço dado com meu pai, ele me diz: "Filha, onde é que a gente veio parar?" Pois é, papai, já que estamos aqui vamos em frente. As portas abriram, a marcha nupcial tocou, eu dei um passo e quem estava no primeiro banco? O fotógrafo. Meu! Comecei a chorar de um jeito. Chorei a cerimônia inteira, os convidados todos chorando comigo, achando que eu estava emocionada. Eu tava era desesperada. Fiquei esperando o padre vir com aquele negócio "se tem alguém contra esse casamento que fale agora ou se cale para sempre". Só que não teve isso e eu casei. Fomos morar numa chácara em Marsilac. Um in-fer-no. Inferno! O modelo-presidiário era o diabo. Violência física teve uma vez, e violência psicológica era todo dia. Ele tomava um garrafão de pinga por semana. Gritava. Eu odeio gente que grita. Dizia que eu não prestava pra nada, nem pra trepar. Eu, super urbana, fiquei presa naquele mundo rural. Passei a me achar uma mulher desinteressante, burra e feia. Mas não queria assumir meu fracasso. Não queria olhar pro meu pai e dizer "Papá, você estava certo". Porque ele tinha me perguntado: "Joy, e se você descobrir que entrou numa fria?". Ah, Papá, eu só vou saber se experimentar. Nesse sentido eu gosto de mim. Meto as caras em tudo, quero viver mesmo, não tenho medo. Quando a gente é assim, umas vezes se ferra e se ferra feio, mas noutras se dá bem e fica feliz de não ter deixado de viver algo maravilhoso. O casamento foi a vez de me ferrar feio. Cheguei a fazer cinco boletins de ocorrência por ameaça de morte. Até que criei coragem, arrumei as malas, peguei as crianças e voltei pra casa de papai. Depois fiquei sabendo pelos vizinhos que o ex-marido fez uma fogueira imensa e queimou todos os nossos álbuns de fotografia.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Tinha um botequim em Pinheiros que eu frequentava muito. Um dia faltou o gerente e o dono me pediu pra ajudar. Fiquei 20 anos. No bar à noite todo mundo cheirava. Pior: os traficantes achavam legal fazer uma presença com a gerente e me davam papelotes de presente. Eu ganhava tanta cocaína que eu distribuía durante a noite. Sempre chegava alguém querendo. Um dia eu peguei um puta congestionamento na rua da Consolação, seis e meia da tarde. Nossa, vou dar um tiro, que não tô aguentando. Abri o porta-luvas, peguei o manual do carro, acomodei no colo, pus o pó em cima e, olha, juro pelos meus netos, eu sai do meu corpo e me vi sentada no carro, com o troço no colo. Meu deu um cinco minutos e, fffffffff, assoprei aquela merda toda pela janela. Nunca mais cheguei perto. Depois tomei ecstasy pra caralho, mas pó nunca mais.


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Foi na noche que conheci o Luciano, o meu segundo grande amor. E, de novo, você acha que ia ser um relacionamento que as pessoas consideravam normal? Claro que não. O Luciano era da cor da sua camiseta. Um crioulo lindíssimo, maravilhoso. Eu tinha 30 anos, ele 26. Negro e mais jovem, outro escândalo. Uma vez fomos no Jardim di Napoli e o restaurante emudeceu quando entramos de mãos dadas. Dava pra ouvir a chama do fogão lá na cozinha, se você quer saber, porque o salão virou um túmulo. Meu pai, que era um amor e gostava de mim, quando apresentei o Luciano, ele falou: "Eu não criei a minha única filha pra namorar com preto, pobre e da polícia". O Luciano era PM. Ficamos quatro anos juntos, período que a prenda gaúcha apareceu de novo. Eu engraxava os coturnos dele, lavava as fardas e, no inverno, acordava as quatro da manhã pra secar elas no ferro de passar. Mas eu era feliz. Adorava aquela vida. Um dia ele virou pra mim e falou: "Eu não te amo mais". Esse pelo menos me deu o motivo do pé na bunda. Só que dói, né, meu?, putaquepariu. Você nunca queira ouvir "eu não te amo mais" da pessoa que você ama. Até hoje me dói.

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Eu sempre me dei bem com todo mundo. Ex-presidiário, policial, traficante, puta, amigas do Pinheiros, playboyzada que ia de Mercedes pra escola, michê, que fui até casada um ano e meio com um. O michê? Pô, maridão. Morava aqui. Saía pra trabalhar e depois me ligava. "Já acabei, more". Eu ia buscar ele e a gente jantava no Pasta & Vino, gastava todo o dinheiro que ele tinha acabado de ganhar. Nos conhecemos na Loca, a boate, manja? Frequentei lá por 15 anos. Ia quinta, sexta, sábado e domingo. Dançava, enchia a cara, tomava ecstasy e saía beijando todo mundo e transando no banheiro. Um dia gostei de um cara e fomos pra casa dele. Chegamos e tinha o cardápio completo: maconha, pó, bala, ácido e outras coisas que eu nem conhecia. Aí aquele fogo, puta loucura, o cara passa a mão assim e, tchum!, tira o olho de vidro. Porra! Eu nem tinha percebido que ele usava. Mas imagina estar no clima pra ter uma noite daquelas e o cara me arranca o olho pra transar?! Só comigo, viu.

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Ah, o legal é ter esse desprendimento pra viver. Se você tem a chance de fazer determinada coisa que é fora do padrão mas não vai te fazer mal, e você pode tirar alguma coisa engraçada disso, por que você não vai fazer, cara? Por quê? Se joga e dá risada, porra. Eu experimentei a vida, tá bom? Deve ser uma merda se arrepender do que não se fez. Eu desconheço esse sentimento, porque tudo o que eu quis eu fiz. Bom, meu, falando agora até me ocorre um arrependimento. E já me sinto mal, cacete. Ah, porque acho que não vai dar mais tempo. Eu me arrependo de nunca ter feito um ménage, falô? Não, não é tão importante mais. Mais importante agora é que o Alzheimer não me pegue e eu continue lembrando de tudo.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Joyce Fornari, 61 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar —- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.