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Balaio do Kotscho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Voltamos à censura da época da ditadura militar por ordem da Justiça?

Colunista do UOL

23/09/2022 15h03

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É gravíssima a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal de proibir a veiculação das denúncias contidas nas reportagens do UOL sobre o império imobiliário construído com dinheiro vivo pela família presidencial.

Na noite de 13 de dezembro de 1968, quando um pelotão ocupou "manu militari" a redação do jornal O Estado de S. Paulo, para instaurar a censura prévia no jornal, logo após a edição do Ato Institucional Nº 5, entrávamos no período mais tenebroso da ditadura, mas nem naquela época vi nada parecido.

Quem exercia o poder de censura era o próprio governo federal, não a Justiça. Ordens emanadas pelos ditadores de plantão eram cumpridas pela Polícia Federal e não havia a quem recorrer. Os Três Poderes passaram a ser um só.

Como é que, agora, um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal se arvora, em pleno regime democrático, o direito de decidir sobre o que os eleitores podem ou não saber sobre os supostos crimes praticados pelos governantes, às vésperas do pleito de 2 de outubro?

Não se trata de defender a liberdade de imprensa para os profissionais de imprensa, mas do direito da sociedade ser informada corretamente e com independência sobre o que acontece no país, para melhor poder decidir no dia da eleição. É assim que as democracias funcionam, ou não.

Nenhuma informação contida nas reportagens do UOL foi desmentida pelo desembargador Demetrius Gomes Cavalcanti. Com base em qual preceito constitucional, então, ele justificou sua decisão, que surpreendeu o país na manhã desta sexta-feira?

Só porque o senador Flávio, filho mais velho do presidente Bolsonaro, não gostou do conteúdo das reportagens, com graves denúncias de corrupção, isso é motivo para o preclaro juiz reinstalar a censura no país?

Fui um dos autores e coordenadores da série de reportagens publicadas pelo Estadão sobre as "mordomias", os abusos dos superfuncionários do governo federal em pleno regime militar, assim que tiraram a censura prévia do jornal.

Nos dias seguintes, o "Estadão" sofreu forte pressão do governo federal, o diretor responsável do jornal, Júlio de Mesquita Neto, foi chamado a ir a Brasília pelo ditador Ernesto Geisel para dar explicações, mas nenhuma instância da Justiça proibiu a sua publicação, que foi reproduzida em mimeógrafos e xerox nos tempos em que não havia internet. Nenhuma informação foi desmentida.

Neste ponto, regredimos, pois agora qualquer guarda de esquina pode dar ordem de prisão ao jornalista e ameaçá-lo fisicamente, e qualquer juiz pode simplesmente tirá-lo do ar, como já está acontecendo nesta campanha eleitoral.

Enquanto o Brasil democrático se mobiliza para evitar que o país volte aos tempos da ditadura, da censura e das torturas, que marcou a minha geração, proliferam sabujos de toda ordem em todas as instâncias para fazer o serviço sujo, até no Supremo Tribunal Federal e na própria imprensa ameaçada pelos donos do poder.

O Poder Judiciário era a última instância, a ultima barreira, a última defesa para barrar o avanço do autoritarismo galopante que, ao final e ao cabo, quer melar o processo eleitoral. Não poderemos nunca permitir que isso aconteça, que a história se repita.

Minha total solidariedade aos colegas Juliana Dal Piva e Thiago Hardy, que estão sendo ameaçados por cumprir seu papel de reportar os fatos com base em documentos e testemunhos, ao final de um trabalho de apuração e pesquisa que durou sete meses. Nenhuma informação foi desmentida.

Eu também sofri muitas ameaças quando foram publicadas as reportagens do Estadão sobre as "mordomias". Fui obrigado a passar um tempo fora do país e não quero que minha filha jornalista, e a filha dela, que está estudando jornalismo e já trabalhando na área, também passem por isso.

Presidentes e eleições um dia passam, mas nós continuamos vivendo e batalhando aqui há três gerações, ganhando a vida honestamente. Não quero que ninguém vá embora. Não posso admitir que "cidadãos de bem" armados e seus sabujos, fardados ou togados, ponham em risco nosso trabalho e nossas vidas. Eu não desisto do Brasil.

Vida que segue.