Em 1985, o músico John Cage veio a São Paulo para participar da Bienal. Em um passeio pela cidade, saiu do carro ao avistar o MASP e gritou: “Essa é a arquitetura da liberdade!” A responsável pela obra gostava de citar esse fato. E acrescentava: “não procurei a beleza, mas a liberdade. Os intelectuais não gostaram, mas o povo gostou.”

Lina Bo Bardi é a abelha-rainha da arquitetura brasileira. Ela segue brilhando quase trinta anos depois de sua morte, em 1992. Esse ano receberá, em homenagem póstuma pelo conjunto de sua obra, o Leão de Ouro da Bienal de Veneza. O curador Hashim Sarkis ressaltou o papel do arquiteto como “criador de visões coletivas”. “Lina é um exemplo de perseverança em tempos difíceis, como guerras, conflitos e imigrações. Em suas mãos, a arquitetura se torna uma forma de arte social capaz de promover o encontro”, registrou ele, no texto de apresentação. Lina também é tema de duas biografias: “O que eu queria era ter história” (Companhia das Letras), de Zeuler R. Lima, e “Lina: Uma Biografia” (Todavia), de Francesco Perrotta-Bosch. Em ambas, a mesma visão: a de uma mulher de personalidade, engajada, ativista.

Nascida na Itália durante a Primeira Guerra, estudou em Roma e mudou-se para Milão após a graduação. Se o conflito deixou traumas em sua família, a Segunda Guerra marcou-lhe na profissão: destruiu seu escritório. Foi quando conheceu o jornalista e crítico de arte Pietro Maria Bardi, por quem se apaixonou. Quinze anos mais velho, ele tinha planos de vir ao Brasil para se encontrar com Francisco de Assis Chateaubriand, empresário que pretendia se firmar como um mecenas internacional ao estilo de Nelson A. Rockefeller, então presidente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Chateaubriand, porém, não entendia nada de arte. Bardi, após a derrota da Itália no conflito, viu uma oportunidade de ouro. Convidou Lina para acompanhá-lo, mas a família dela nunca aprovaria uma viagem para a América do Sul com um homem solteiro. Ela resolveu a questão: casaram-se.

Quem olha o MASP não imagina que ele poderia ter sido erguido no Rio de Janeiro. Os Bardi acreditavam que o museu teria melhor acolhida na capital do País – na época, justamente o Rio. Chateaubriand bateu o pé alegando que o dinheiro estava em São Paulo. A animosidade de Lina pela cidade logo virou paixão: em 1950, a primeira versão do Museu de Arte de São Paulo foi inaugurada na região central, perto do Edifício Esther, lar de artistas modernistas. Impulsionada pela Semana de Arte Moderna de 1922, a cidade tornara-se o centro de jovens ambiciosos e talentosos – como Lina.

Briga com Niemeyer

Havia uma disputa entre Chateaubriand e outro milionário local, Ciccillo Matarazzo. Ambos queriam o apoio de Rockefeller, cada vez mais envolvido em projetos na América do Sul, para confirmar quem seria o maior mecenas brasileiro. Matarazzo se aproximou do carioca Oscar Niemeyer; Chateaubriand adotou os Bardi. A rivalidade passou a ser aberta. Sobre o pavilhão do Ibirapuera, projeto de Niemeyer apadrinhado por Matarazzo, Lina foi direta: “é uma floresta de colunas de concreto, uma vergonha, uma humilhação, um recuamento provinciano e ignorante”. Nessa época ela passou a se firmar como designer de interiores e móveis, por meio de sua Oficina Paubrá. O sucesso levou o casal italiano a querer construir uma casa na cidade. Levados pelo colega Gregori Warchavchik, ícone da arquitetura racionalista e formado na mesma universidade que Lina, em Roma, os Bardi se apaixonaram por um terreno no Morumbi. Lina ergueu ali, entre árvores e morros, sua famosa Casa de Vidro. Mistura de residência e estúdio, é considerada até hoje uma de suas obras mais icônicas.

Aos poucos, Lina, saiu da sombra do marido. Confiante, largou Bardi em São Paulo e foi a Salvador para tocar o Museu de Arte Moderna da Bahia. Restaurou o casarão Solar do Unhão e tornou-se a diretora da instituição – até o golpe militar, que exigiu sua demissão. Na volta, dedicou-se a sua obra mais famosa: o novo prédio do MASP, na Avenida Paulista. Chateaubriand já havia morrido, mas os Bardi cumpriram o acordo: em 7 de novembro de 1968, com a presença da rainha Elizabeth II, o museu foi inaugurado. “Muitos ficarão escandalizados com a brutalidade do acabamento, que não esconde os elementos da construção e põe à mostra o concreto”, disse Lina. “O vão livre não foi uma excentricidade: procurei uma arquitetura simples, monumental e coletiva, de dignidade cívica.”

Até sua morte, em 1992, Lina deixaria sua marca em outros projetos icônicos – o teatro Gregório de Mattos, em Salvador, e o Oficina, em São Paulo, entre outros. No final dos anos 1970, realizou sua obra mais complexa, bem executada e significativa: o Sesc Pompeia. Transformou os galpões de uma antiga fábrica em um enorme e versátil centro cultural, com teatro, restaurantes e espaço para exposições – até o córrego local foi mantido e integrado à obra. “Há um gosto de vitória e encanto na condição de ser simples. Não é preciso muito para ser muito”, definiu Lina. Informalmente, ela se referia ao seu xodó como a “cidadela da liberdade” – nome adequado à arquiteta mais livre que já pisou por aqui.

Lina Bo Bardi: quatro obras inesquecíveis