“Não ficar não é careta. Pense duas vezes. Segure a onda. Você pode ir a uma festa, se divertir, mas sem precisar ter relação sexual” Damares Alves, ministra da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos (Crédito:EVARISTO SA/AFP)

Fernanda* nasceu e cresceu no reduto das igrejas neopentecostais, assim como 40% dos 18 milhões de adolescentes brasileiros com idades de 15 a 19 anos, de acordo com o IBGE. Foi dentro da igreja que ela aprendeu a dizer “não” quando o assunto era sexo. Ela chegou à idade adulta em um lugar onde mulheres e homens que estabelecem relações sexuais antes do casamento são uma espécie de decepção para Deus. A abstinência sexual era uma imposição religiosa. Mas, ainda que frequentasse um meio social em que os jovens só deveriam estabelecer relações íntimas após o matrimônio, Fernanda não seguiu as regras. Aos 20 anos, se tornou tudo o que os seus pais, a igreja e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que agora transformou a abstinência em “política pública em construção”, não queriam: uma jovem sexualmente ativa. Não só ela. Durante acampamentos evangélicos, ela relembra que os adolescentes acordavam com camisinhas usadas espalhadas pelo lugar. Abolir o tema sexualidade não fez com que adolescentes deixassem o sexo de lado. E eles faziam com pouca ou nenhuma orientação. Felizmente, no caso dos colegas de Fernanda, o preservativo era usado.

Por tudo isso, a jovem de 23 anos, não acredita no projeto retrógrado de Damares e que é de um obscurantismo total. “Me aterrorizaram, dizendo que ter relações sexuais antes do casamento eu não ia ganhar o céu, mas mesmo assim fiz sexo”. Para Fernanda, a intenção do governo de transformar a abstinência sexual em política pública para combater a gravidez precoce, como quer Damares, além de fundamentalista é ineficaz e não trará qualquer resultado positivo. Para Cristane Cabral, do Departamento de Saúde Pública da USP, adotar abstinência implica em deixar de desenvolver “habilidades afetivas e emocionais sobre como se relacionar com o próprio corpo”. E mais: se adolescentes são afastados de discussões científicas sobre o tema, como pretende o governo, a que tipo de informação eles terão acesso? A abstinência sexual da ministra Damares começa a ser implementada em fevereiro deste ano.

“Necessitamos de uma política pública que inclua um projeto de educação sexual na adolescência e não de incentivos à abstinência”, explica a psicóloga Lucinéia Nicolau Marques. Em sua visão, a proposta da ministra é “incompatível”, na medida em que ignora a diversidade cultural, social e religiosa do País. Lucinéia parte do pressuposto de que a adolescência é uma fase de construção mental e emocional, um período em que o jovem busca conhecimento e se organiza para a maturidade e, consequentemente, define sua identidade. “Quanto menos debate houver, maior o nível de fantasia e de ideias equivocadas. Isso, aliado a um movimento impulsivo próprio da fase, pode deixar os adolescentes mais expostos aos riscos de DSTs e até mesmo ao suicídio”, completa.

A gravidez precoce é, de fato, um problema sério no Brasil. Em cada 1000 jovens entre 15 a 19 anos, 62 estão grávidas, segundo dados da ONU. No mundo, são 44 para cada 1000. Uma boa forma de reduzir essas altas taxas brasileiras é com informação de boa qualidade, que leve a um uso maior de preservativos e métodos contraceptivos. As camisinhas são menos populares do que deveriam ser. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra que somente 39% dos brasileiros entre 15 e 64 anos usaram preservativo na última relação sexual. Quando se tratam de parceiros fixos, por conta da segurança, a porcentagem cai para 20%. Ou seja, o tabu sexual e a falta e políticas públicas voltadas à sexualidade é uma questão cultural brasileira.

O Brasil precisa falar mais sobre educação sexual – e não o contrário. E a camisinha (e não a fantasiosa abstinência) continua sendo o melhor meio de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez precoce.

“Um período de trevas”

Há 20 anos envolvido em discussões sobre sexualidade, o presidente e fundador da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde, Educação e Terapia Sexual (Abrasex), Paulo Tessarioli, questiona a proposta da ministra Damares: “Quem dialoga com adolescentes sobre isso? Quem são os interlocutores?”. Ele considera a adolescência sem informação sexual “um período de trevas”. Entre outros problemas, Tessarioli acredita que se o adolescente não tiver acesso à informações científicas e médicas, ele buscará conhecimento na internet e tende a se envolver com a pornografia, que não é a melhor forma de evoluir na própria sexualidade. Em 2017, a Sociedade Americana pela Saúde e Medicina do Adolescente produziu um documento em que defendia a extinção de programas baseados na abstinência sexual por serem eticamente deficientes.

Grávida da pequena Elis há oito meses, a jovem Laís Oliveira, de 20 anos, manifesta indignação com o fato de a abstinência sexual ser tratada como política de governo. Mesmo que sua gravidez não tenha sido planejada, ela foi capaz de assimilar a notícia e teve apoio da família, que a acolheu plenamente. “A medidas do governo assustam e afastam”, diz Laís. “Nós queremos uma escola que nos deixe prontos para respeitar jovens que são abstinentes e para jovens que façam sexo, dependendo da opção de cada um, para que todos tenham a possibilidade de desenvolver sua sexualidade de forma mais segura”.